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sexta-feira, abril 19, 2024

Sudão| O governo de al-Bashir caiu, mas a ditadura continua viva. Abaixo a ditadura e sua constituição

Derrubar o governo de al-Bashir foi uma importante batalha vitoriosa. Porém, as batalhas, sempre, são parte de uma guerra. Essa guerra contra o governo dos militares ainda não terminou. A Constituição elaborada pela ditadura instalada em 1989 foi remendada com a Carta Constitucional e nada mudou. Este artigo tem o objetivo de demonstrar que o sistema jurídico em vigência, isto é, a Carta Constitucional assinada em 4 de agosto de 2019, permite que a aliança entre militares e civis siga governando sem resolver as questões democráticas mais elementares e mais, continue vigiando, controlando e reprimindo os trabalhadores, os jovens e o povo pobre.

Por: Martin Ralph e Cesar Neto

A heroica luta para derrotar al-Bashir

A derrota do governo al-Bashir foi possível por conta de um dos maiores processos insurrecionais havido no continente africano nas últimas décadas. A combinação de greves de trabalhadores (Petro-Energy, ferroviários de Atbara, Cia de Farinha SEEN, de bancários, professores etc.), com manifestações em frente das unidades do Exército, com a maioria das vilas e comunidades envolvidas na mobilização, todos esses processos derrotaram al-Bashir mas não expulsaram os militares do poder.

Meia vitória. Meia derrota

Como dissemos acima foi uma batalha vitoriosa, mas a guerra continua. A ausência de uma direção classista, independente e revolucionária foi decisiva para que nesta “batalha” não se ganhasse a guerra. Os militares genocidas conseguiram impor um governo de coalizão e este garantiu a estabilidade do novo governo, inicialmente, com a reforma da Constituição herdada de al-Bashir.

A Constituição do regime de junho de 1989

O governo de al-Bashir, desde 1989, se caracteriza por ser um regime que se apoiava incondicionalmente no Exército, no poder das armas e na imposição. Os legisladores, os juízes, jornalistas etc. tiveram que ir se moldando ao poder que emanava dos fuzis e das prisões. Ao longo do tempo essa opressão foi se institucionalizando na medida em que foram sendo criadas leis que “legalizavam” esse regime. E para que o regime institucionalizasse a violência repressiva foram criadas, à sua imagem e semelhança, Constituições de 1998 e 2005.

A Carta Constitucional garante o poder aos militares

Tal qual no início da ditadura de al-Bashir, as forças que assumiram o poder em 2019, trataram de construir seu sistema de leis e para isso fizeram um remendo à Constituição de 2005 através da Carta Constitucional. O Conselho Militar de Transição, para que os militares seguissem governando, necessitavam de uma “nova” Constituição, elaborada por eles, sem a presença daqueles que deram seus mortos e feridos para derrubar a ditadura de al-Bashir. Então, a Carta Constitucional foi criada para legitimar o roubo da liberdade e da soberania conquistada nas ruas.

A imprensa internacional descreve com muita nitidez o clima e o ambiente do qual saiu a Carta Constitucional:

“Em uma sala cheia de altos cargos estrangeiros e sob fortes medidas de segurança, a oposição civil do Sudão e a junta militar que ocupa o poder no país ratificaram neste sábado a Constituição que servirá de roteiro para os próximos três anos e três meses de transição”[1]

Ali não foram convidados os sindicatos, as organizações de mulheres, as organizações de jovens, organizações de soldados e cabos insurretos, onde estavam aqueles que lutaram nas ruas pelo fim da ditadura de al-Bashir? Pois é, os que lutaram não estavam na sala cheia como diz o jornal. Os que estavam eram: altos cargos estrangeiros, a elite da oposição civil e os militares.

A Carta Constitucional perpetua a estrutura repressiva de poder

Lendo atentamente a Carta Constitucional vemos que há vários pontos que explicam como o seu objetivo central é dar legitimidade ao novo governo dos militares e da burguesia local contra os trabalhadores e o povo pobre.

Vejamos alguns exemplos:

Capítulo 1: Disposições gerais

*”A Constituição Transitória do Sudão de 2005 e as constituições das províncias são revogadas, enquanto as leis emitidas sob ela permanecem em vigor, a menos que sejam revogadas ou alteradas”, ou seja: acabam com a Constituição de al-Bashir mas as leis seguem vigentes.

* “Os decretos emitidos a partir de 11 de abril de 2019 até a data de assinatura da presente Carta Constitucional mantêm-se em vigor, salvo se forem revogados ou alterados pelo Conselho Militar de Transição” Isto significa que se os Decretos não forem de acordo aos interesses militares serão revogados ou alterados pelo CMT.

Capítulo 2: Período de transição

* (9) “Estabelecer mecanismos para preparar a redação de uma constituição permanente para a República do Sudão.(10) Realizar uma conferência constitucional nacional antes do final do período de transição”. Aqui está claro que a futura Constituição será feita a portas fechadas e sem a participação dos trabalhadores e do povo pobre. Será uma constituição para perpetuar legalmente os abusos do capitalismo atrasado e dependente do Sudão.

* (12) Implementar programas para reformar as agências estatais durante o período de transição de forma que reflita sua independência, patriotismo e a distribuição justa de oportunidades nelas, sem alterar as condições de aptidão e competência. A tarefa de reformar os corpos militares é confiada às instituições militares de acordo com a lei. Neste ponto fica claro que a tarefa de desmontar ou criar novos aparatos repressivos segue sendo prerrogativa dos próprios militares. Desmontar a NISS (Serviço Nacional de Inteligência e Segurança) será uma decisão dos militares e a vontade popular não será levada em consideração. A mesma regra se aplicará para as Força de Apoio Rápido (Janjaweed)

* (16) Formar um comitê de investigação nacional independente, com apoio africano, se necessário, conforme avaliado pelo comitê nacional, para conduzir uma investigação transparente e meticulosa das violações cometidas em 3 de junho de 2019 e eventos e incidentes em que violações dos direitos humanos e dignidade de civis e militares foram comprometidos. Os mais de 700 feridos e os 100 mortos serão investigados por um comitê designado pelos próprios militares no governo para investigar se houve violações aos direitos e dignidade de civis e militares. Ao final dessa farsa investigativa, sem pressão popular, já dá para ler que se houveram 100 mortos e 700 feridos, também 3 militares levaram pedrada. E a grande conclusão será: houveram excessos de ambos lados. Só restam reconciliar…. com os criminosos.

Capítulo 4: Conselho de Soberania

A Carta Constitucional, em vigor, legaliza todos os atos de continuidade dos militares e genocidas que estão no poder.  Vejam o que diz textualmente:

[10]     (a.) O Conselho de Soberania é o chefe de Estado, o símbolo de sua soberania e unidade, e o Comandante Supremo das Forças Armadas, Forças de Apoio Rápido e outras forças uniformizadas. É formado por acordo entre o Conselho Militar de Transição e as Forças de Liberdade e Mudança.

Para consolidar esse poder, entre as competências e poderes do Conselho de Soberania estão: nomear o Primeiro Ministro e seu gabinete, e se pode nomear, pode também destituir. Ao mesmo tempo tem o mesmo controle sobre Conselho Legislativo de Transição, Conselho Superior da Magistratura, sobre Juízes do Supremo Tribunal, Procurador-Geral do Conselho Superior do Ministério Público, Auditor Geral etc.

Poderíamos seguir analisando a estrutura de poder do governo de Burhan e Hamdok e vamos concluir que ambos, tal qual, al-Bashir fizeram uma Carta Constitucional para se perpetuar no poder e governar para a burguesia local e imperialista. Para não cansar o leitor vamos parar por aqui e os convidamos a juntos seguir estudando o conteúdo da Carta Constitucional.

Quais são as demandas do povo? Qual a resposta da Carta Constitucional?

A revolta iniciada em dezembro de 2018, segundo alguns analistas foi por causa do aumento do pão e da gasolina. Outros, explicam que a inflação estava em 122% e era uma das mais altas do mundo. Na verdade, no nosso entender, as mobilizações começaram por que a população já não aguentava mais seguir vivendo em um país rico em recursos naturais e sem direitos. E mais do que isso, viver em um país controlado por genocidas. A população sabia o que não queria e tinha ideia do que queria. Vamos resumir alguns desses anseios e qual é a proposta da Carta Constitucional, formulada pelo genocida Burham e por Hamdok, representante da burguesia nacional e imperialista.

Educação e Saúde: Para que possamos falar em democracia temos que garantir que a saúde e a educação seja pública, isto é um direito de todos, sem exceção. E mais do que públicas têm que ser gratuitas para que todos tenham acesso. A Carta Constitucional não fala em dever e obrigação de que seja pública e gratuita.

No capítulo 14 da Carta Constitucional, no item 64 (Direito à saúde) diz que: “O Estado compromete-se a prestar cuidados de saúde primários e serviços de emergência gratuitos a todos os cidadãos, desenvolver a saúde pública e estabelecer, desenvolver e qualificar instituições de diagnóstico e tratamento básico”.

Quer dizer, o Estado se “compromete”, mas não é obrigado por lei a prestar cuidados de saúde. E mesmo assim, somente para cuidados primários e de emergência. Tratamentos mais complexos e cirurgias, o Estado não tem obrigação. Assim como, não define qual a porcentagem do Orçamento da União será destinada à saúde e educação. E como não está definido essa obrigação no orçamento, o governo gasta quanto quiser e puder depois de pagar a dívida externa e os acordos com o FMI.

Restauração do Direito à terra: A ditadura de al-Bashir e os militares que o rodeavam construíram grandes empresas de mineração, venderam terras aos estrangeiros e expulsaram os moradores de suas terras ancestrais. Para colocar um fim na ditadura de al-Bashir é preciso restituir as terras aos seus antigos donos. Mas a Carta Constitucional, capitulo 14 (Carta de Direitos e Liberdades), no item 60 (Direito de propriedade) garante que: “a propriedade privada não será apropriada senão por força de lei e por interesse público, e em troca de justa e imediata compensação. Os fundos privados só podem ser confiscados em virtude de uma decisão judicial”.  Em síntese as terras tomadas mediante expulsão, violência e genocídio, serão respeitadas. E só se poderão questionar essas medidas pela via Judicial e caso a Corte nomeada pelo CMT, por um milagre divino resolva expropriar, e ainda assim, seus donos atuais serão indenizados.

Soberania nacional, FMI e o combate à fome: o tema da soberania nacional é um tema de destaque na Carta Constitucional. No capítulo (Disposições Gerais), aparece com destaque e no item 4 diz: “A soberania pertence ao povo e é exercida pelo Estado de acordo com as disposições da Carta Constitucional, que é a lei suprema do país e suas disposições prevalecem sobre as demais leis”. A soberania pertence ao povo são belas palavras. Um país soberano diz: primeiro damos de comer ao povo e depois pagamos (se é que devemos) a dívida externa. O governo Burham-Handok, sem consultar o povo, desdenhando da soberania, fez um acordo com o FMI que elevou a inflação a níveis nunca vistos e aumentou ainda mais o sofrimento do povo. A opção foi: primeiro o FMI, depois a comida para o povo. Isso é soberania?

al-Bashir saiu e seus homens continuaram. O caso Kenana Sugar Company

Não temos dúvidas de que os militares que usufruíram dos benefícios da ditadura de al-Bashir seguem governando ou controlando as empresas estatais e privadas. A Carta Constitucional, no capitulo 2 (Período de Transição), no item 3 diz: “responsabilizar por lei os membros do antigo regime por todos os crimes cometidos contra o povo sudanês desde 30 de junho de 1989”, e no item 6, reafirma: “Trabalhar para regularizar a situação daqueles que foram arbitrariamente demitidos do serviço civil e militar e se esforçar para remediar os danos sofridos de acordo com a lei”.

Os trabalhadores da Kenana Sugar Company, foram à greve para exigir “direitos sindicais básicos, aumento de salários para compensar o aumento do custo de vida, a remoção de figuras associadas ao antigo regime da empresa e a reintegração de 34 trabalhadores demitidos por participar da revolta contra o ditador Omar al-Bashir”.[2]

Foram dois meses de greve para que as belas palavras da Carta Constitucional tivessem algum valor.

Expropriação das empresas dos militares

Os trinta anos de ditadura permitiram a formação de uma nova burguesia que enriqueceu na ponta do fuzil. O jornal da International Socialist League[3], nos explica bem esse processo: “Sob al-Bashir, o general Hamdan (Hemeti) e os generais do exército tornaram-se magnatas de negócios que se apoderaram de setores inteiros da economia, disse Suliman Baldo, do Projeto Enough. “Isso não é apenas sobre poder; é sobre dinheiro”, disse ele. “Comandantes do Exército e Hemeti metidos em corrupção até o pescoço – é por isso que eles têm tolerância zero para um governo civil no Sudão”, e continuou explicando que: “A guerra tornou o General Hamdan rico, com interesses em mineração de ouro, construção e até uma empresa de aluguel de limusines. Seus patronos incluem Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita”.

A Carta Constitucional, no capitulo 14 (Carta de Direitos e Liberdades), admite a pena de morte. No item 53 diz: “A pena de morte só pode ser infligida como retribuição (qasas), uma punição (hudud) , ou como uma pena para crimes de extrema gravidade, de acordo com a lei”.

A pena de morte é admitida na Carta Constitucional, mas não tem uma linha impondo a expropriação dos bens fruto de corrupção ou roubo de bens e ativos do Estado sudanês.

Militares controlam a sociedade ou a sociedade controla os militares? Quem vai dissolver o NISS? E quem vai de fato analisar os crimes militares contra a população?

Historicamente, o papel do Exército é o de defesa frente ao inimigo externo. Porém, depois de mais de 30 anos de ditadura militar o Exército mudou o seu foco. Deixou de ser o inimigo externo e passou a ser o “inimigo interno”, isto é a sua própria população. A exigência da volta dos militares aos quartéis é uma necessidade imperiosa. A Carta Constitucional, no capitulo 2 (Período de Transição) exclui qualquer possibilidade do povo controlar esse órgão do Estado capitalista sudanês. No item 12 lemos: “a tarefa de reformar os corpos militares é confiada às instituições militares de acordo com a lei”. Isto significa que o fim do NISS (Serviço Nacional de Inteligência e Segurança) não acontecerá.

Nem o fim do NISS e nem o julgamento imparcial dos militares assassinos e genocidas. No capítulo 11 (Agencias Uniformizadas), trata dos Tribunais Militares, no item 37 afirma que “podem ser estabelecidos tribunais militares para as Forças Armadas, Forças de Apoio Rápido, forças policiais e Serviço Geral de Inteligência para julgar seus membros por violações das leis militares”.

Carta Constitucional feita sem representantes eleitos pela população

A Carta Constitucional não foi fruto de debates, deliberações e votação por parte da população. Na própria introdução da carta podemos ler “nós, o Conselho Militar de Transição e as Forças de Liberdade e Mudança, concordamos em emitir a seguinte Carta Constitucional”, isto significa que a Carta Constitucional foi escrita entre quatro paredes e sem a presença daqueles que deram suor, sangue e a vida pelo fim da ditadura e pela democratização do pais.

A Carta Constitucional permite que se faça a Constituição entre quatro paredes

A Carta Constitucional já prepara um novo golpe nas reivindicações democráticas ao definir que a próxima Constituição seja feita dentro do período de transição, isto é, com a atual ditadura e mais sem consulta aos trabalhadores e a população.

Essa decisão está explícita no capítulo 2 (Período de Transição) através do item 9: “estabelecer mecanismos para preparar a redação de uma constituição permanente para a República do Sudão”,  e aprovação da futura  Constituição se dará mediante uma conferência chamada pelo atual governo, conforme se lê no item 10: “realizar uma conferência constitucional nacional antes do final do período de transição”.

Combinar a luta pelo fim do governo e a luta pela Assembleia Constituinte

Nas ruas e nas lutas os Comitês de Resistência de Khartoum, já declararam: “prometemos ao nosso povo em todas as cidades e vilas que não haverá recuo nem complacência”. E também disseram: “Nenhum acordo, nenhum compromisso, nenhuma parceria com os criminosos”, se referindo ao alto comando das Forças Armadas e aos oficiais dirigentes dos Janjaweed.

Essa decisão dos Comitês de Resistência de Khartoum está correta e é preciso apoiá-la. Mas aqui cabe uma advertência: cuidado pois podemos derrotar esse governo e o novo governo se apoiar na atual Carta Constitucional. Por esse motivo dizemos que é preciso lutar pelo fim do governo e combinar com a luta por uma Assembleia Constituinte.

 

A Assembleia Constituinte tem que ser: livre, democrática e soberana

A Assembleia Constituinte é o “máximo a que pode chegar a sociedade burguesa”, segundo Leon Trotsky. Para que a futura constituição cumpra os objetivos de impor importantes conquistas da já velha revolução burguesa, é preciso que antes de tudo seja: livre, democrática e soberana.

Livre significa que primeiro tem que derrotar o governo. Não pode existir nenhuma restrição ao processo constitucional. Desde o seu início, na escolha dos futuros deputados constituintes até a assinatura da nova constituição.

Democrática significa que todos podem participar. Nenhuma restrição aos partidos e organizações que nas lutas derrotaram al-Bashir. Liberdade para todos os partidos políticos, direito à candidaturas independentes, direito de voto a analfabetos, soldados e migrantes.

Soberana significa que suas decisões não poderão ser questionadas por nenhum órgão do Estado capitalista, atrasado e dependente sudanês.

 

Três tarefas que tem que estar na cabeça de cada lutador

Todo aquele que está nas ruas, nos sindicatos, nas organizações de resistência deve ter três grandes objetivos:

  1. a) Nenhum acordo, nenhum compromisso, nenhuma parceria com os criminosos. Abaixo o governo;
  2. b) Convocar uma Assembleia Constituinte livre, democrática e soberana;
  3. c) Avançar na construção de um governo dos trabalhadores e do povo pobre.

[1]https://www.efe.com/efe/america/mundo/sudan-ya-tiene-una-constitucion-para-la-transicion/20000012-4044824

[2]https://menasolidaritynetwork.com/2020/09/21/urgent-call-out-for-solidarity-with-sudan-sugar-workers/

[3]https://litci.org/pt/sudao-a-revolucao-na-encruzilhada/

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