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sexta-feira, março 29, 2024

Derrotar “Escudo contra o aborto em Honduras”

Em 21 de janeiro passado, à margem de qualquer debate científico e dialogando unicamente com setores fundamentalistas religiosos, o Congresso Nacional (CN) de Honduras aprovou uma proposta de reforma à constituição denominada “Escudo contra o aborto em Honduras” para blindar, a partir da constituição, a penalização do aborto sob qualquer circunstância. E este não foi o único ataque democrático, na mesma sessão legislativa foi proibida a reforma do artigo 112 que estabelece que os casamentos só podem ser entre um homem e uma mulher. O Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) se pronuncia categoricamente contra as reformas do artigo 67 e do artigo 112, reiterando nosso absoluto acordo com a legalização do aborto e o casamento igualitário.

Por: Kely Núñez

O medo da maré verde

Definitivamente, a vitória da maré verde na Argentina tem uma enorme importância na América Latina e no mundo, marcando uma pauta na luta histórica pela legalização do aborto. Mas, esta vitória das mulheres não só encorajou os setores mais progressivos, como também colocou em alerta os setores conservadores, e esse é o caso de Honduras.

A proposta “Escudo contra o aborto” foi apresentada pelo vice-presidente do CN Mario Pérez, do partido do governo, e respaldada por mais de dois terços da câmara legislativa (86 votos de um total de 128 deputados).

Segundo Mario Pérez:[1]

“Vendo o que aconteceu no Senado argentino e dois Estados no México onde já foi legalizada a prática do aborto na capital do México e [o] Estado de Oaxaca, não temos nenhuma dúvida de que nossa posição geográfica no centro iria ser suscetível a essa onda de ideias ou, se quiserem chamar de outra forma, de ondas de em algum momento pressionar o CN, os legisladores hondurenhos, os que vierem, os futuros, para legalizar o aborto no país (…) decidi apresentar esta proposta de lei baseado em meus princípios cristãos”.

Com seu discurso, Mario Pérez faz uma nítida referencia à luta das mulheres pela legalização do aborto na Argentina, e pretende se blindar contra qualquer processo de mobilização que possa pressionar o CN para que seja lei também em Honduras. Além de demonstrar que legisla com a bíblia na mão, em um Estado que se supõe que deveria ser laico. O medo de Mario Pérez à maré verde também foi expresso por outros deputados, por exemplo Mauricio Olivia, presidente do CN e pré -candidato presidencial nas próximas eleições, que disse: [2]

“Considero que como sociedade devemos fomentar questões que, em lugar de nos dividir, nos unam; que longe de semear o mal, nossas ações se orientem a proteger os mais vulneráveis”. “Não podemos permitir que vozes dissonantes continuem acreditando que Honduras seguirá os passos do mal que seguiram outras nações que converteram um ato tão infame como tirar a vida de um feto em crescimento”.

Tomas Zambrano secretário do CN também se somou:[3]

“O objetivo é estabelecer na constituição uma proibição contra o aborto, uma blindagem à constituição, sabemos da onda ou reformas que tem vindo do sul para o norte com partidos de ideologia de esquerda”.

A nefasta reforma consiste na modificação do artigo 67 que agora incluirá: “proibida e ilegal a prática de qualquer forma de interrupção da vida em todo momento. Serão nulas e inválidas as disposições legais que estabeleçam o contrario”. Claramente se trata de uma ofensiva reacionária e não científica baseada em preceitos e preconceitos religiosos. Blindar a proibição do aborto a partir da constituição dificulta uma futura legalização do aborto no país. Até o momento a proibição do aborto só era estabelecida no código penal de Honduras, onde a interrupção da gravidez está tipificada como delito e pode significar entre 2 a 8 anos de reclusão para a mulher que o fizer.

Dizemos que é uma blindagem porque é mais difícil reformar a constituição que o código penal; a própria reforma do artigo 67 estabelece claramente que qualquer iniciativa a favor do aborto automaticamente será considerada como nula, e que, além disso, para reformar esta nova disposição será necessária a aprovação de três quartos do CN (96 votos), a mesma quantidade necessária para processar o ditador JOH.

O partido de JOH também se encarregou de garantir que a reforma se realizasse quatro dias antes do início da IV e última legislatura (25 de janeiro), que paradoxalmente coincidiu com o dia da mulher hondurenha. A urgência do conservadorismo consistia em que, ao não reformar nesses dias, a iniciativa só poderia ser discutida pelo CN eleito nas próximas eleições fraudulentas.

Qual é a situação do aborto em Honduras?

A restrição do aborto demonstrou que não impede que a mulheres o façam, ao contrario, obriga mulheres e meninas a fazer de forma insegura e insalubre, inclusive colocando suas vidas em risco, ao ter que recorrer a uma interrupção da gravidez de forma clandestina. As mulheres pobres são as mais vulneráveis, por não contarem com recursos para fazer um aborto no exterior, em países onde a legislação o permite.

Segundo o Instituto Guttmacher, as taxas de aborto são mais altas em países onde o aborto é proibido do que em países onde é legal em termos amplos, e são aproximadamente 121 milhões de gravidezes não planejadas que ocorreram a cada ano, entre 2015 e 2019, dos quais 73 milhões (61%) terminou em aborto. E um aborto inseguro representa entre 5% e 13% do total das mortes durante a gravidez.

Em 1985, sob reformas do código penal, Honduras passou a criminalizar o aborto em sua totalidade, e atualmente, junto com a Nicarágua, El Salvador, Haiti, e República Dominicana, proíbe sem exceções a interrupção–voluntaria– da gravidez, inclusive em caso de estupro, incesto, gravidez que coloque em risco a vida da mãe, ou em casos de malformações congênitas incompatíveis com a vida. A proibição total do aborto, além disso, é feita à margem de números alarmantes, e apesar de que a descriminalização do aborto ser considerada uma assunto de direitos humanos por parte dos órgãos de direitos humanos internacionais, e portanto parte das obrigações do Estado.

A ONU estima que no país são praticados entre 51.000 e 82.000 abortos por ano, sendo o país com a segunda taxa mais alta de gravidez em adolescentes e em zonas rurais (30%), onde um em cada quatro partos é de uma adolescente menor de 19 anos. Em muitos casos, a gravidez é produto de um estupro ou incesto. Prova disso é que cinco dias depois que a moção foi apresentada no congresso, em 16 de janeiro, Tiempo Digital anunciava que uma menina de 10 anos deu à luz depois de um duplo estupro que envolvia o pai da menor.

Por outro lado, as vítimas de violência sexual estão mais vulneráveis desde que em 2009, com o Golpe de Estado, foi proibido o uso, distribuição e venda das Pílulas Anticonceptivas de Emergência (PAE) por serem consideradas erroneamente abortivas, sendo o único país da região que as proíbe.

Quando se abriu a possibilidade de reformas no Código Penal, a plataforma SOMOS MUCHAS apresentou, em 2017, uma proposta de descriminalização do aborto em três situações. Mas a proposta foi rechaçada e não recebeu nenhum compromisso de apoio por parte dos partidos opositores no CN. Pelo contrario, a reforma diminuiu as penas dos estupradores. Enquanto outros países conseguiram avanços importantes. Nesse mesmo ano, o Chile, que era parte da onda de mobilizações na América do Sul, conquistou as três situações em que o aborto pode ser realizado, e um ano depois, em um referendo com resultados a favor, a Irlanda legalizou o aborto.

Até aqui é importante salientar que o direito à vida, tão defendido pelos setores pró-vida é hipócrita quando não considera a vida da mãe, que é a única vítima face à impossibilidade de poder fazer um aborto em condições seguras.

Segundo a Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de Honduras, em um posicionamento emitido em 25 de janeiro: [4]

“As reformas constitucionais aprovadas estão baseadas em sérios erros conceituais sobre a finalização da gravidez a partir do ponto de vista científico, bioético e por causas médicas. Lamentavelmente esses erros estão incluídos no código penal aprovado na câmara legislativa. Esta reforma de lei vem aprofundar a deterioração na saúde e na vida de mulheres e meninas, provocando um retrocesso no direito à saúde reprodutiva e impactando ainda mais nos avassaladores números de mortalidade materna em nosso país”.

É evidente a inexistência de um Estado laico no país, ao não levar em conta a opinião das pessoas qualificadas e, pior ainda, as próprias mulheres, mas sim a Igreja católica, a confraternidade evangélica e os pró-vida, em uma discussão que não lhes diz respeito. Também não esquecemos que estes setores revisam os guias metodológicos de educação sexual emitidos pela Secretaria de Educação (SE), e em 2018 recomendaram retirar ilustrações de órgãos sexuais reprodutivos, sugestão que a SE executou. Assim que começaram a distribuir, a Igreja católica manifestou que, ainda que participe das discussões, não está de acordo com sua distribuição, porque os guias fomentam as relações sexuais desde cedo, realidade que eles ignoram.

Além disso, se uma mulher quiser ser esterilizada para não ter, ou não ter mais filhos, são pedidos a ela uma série de requisitos que vão desde a idade, autorização do esposo, e já ter tido ao menos 2 ou 3 filhos.

O Partido Nacional não respeita a vida

O argumento central dos parlamentares é que o direito à vida deve ser defendido desde a concepção, e os deputados se autoproclamam defensores e respeitadores da vida, quando, em seu mandato, o que menos defendem no país é exatamente isso, e são as mulheres da classe trabalhadora as que levam a pior.

A ditadura de JOH, inclusive assassinou a sangue frio quando foi necessário, e com suas políticas nos conduz inevitavelmente para a morte. Sua má administração diante da pandemia da Covid-19 e os posteriores furacões IOTA e ETA é a melhor prova. A ditadura conservadora diante do saque, da falta de insumos e de medidas sérias, faz com que nós hondurenhos percamos a batalha contra a Covid-19. Só o mês de janeiro fechará com mais de 1.200 mortes segundo a Associação Nacional de Funerárias, e foram milhares os que decidiram arriscar suas vidas no êxodo migratório diante das perdas que as chuvas deixaram. Outros vivem em barracas na beira das ruas. Hipócritas, não acreditamos em seu discurso de dupla moral!

Unidade e luta pelo direito de decidir: sigamos o exemplo argentino

Criminalizar o aborto não impede que este seja praticado, assim como legalizá-lo não obriga nenhuma mulher a praticar. Criminalizar o aborto penaliza sim a liberdade das mulheres de decidir sobre seus corpos, a escolher o momento ou não de sua maternidade. Com a legalização do aborto pretende-se apenas retirar o aborto da clandestinidade, e proporcionar às mulheres opções legais, gratuitas e seguras, sendo esta uma questão de saúde pública.

No PST estamos convencidos de que para enfrentar esta medida reacionária e de ódio às mulheres é necessário trabalhar entre as organizações sociais e populares para obter a mais ampla unidade, e apostar como na Argentina na mobilização nas ruas. Desde já nos colocamos à disposição desta tarefa. Nenhum partido ou movimento social pode chamar-se de revolucionário e estar contra o aborto. Que JOH e seus deputados não façam uma ditadura de nossos corpos! É urgente que realizemos ações de protesto pelo direito de decidir, pela educação sexual, laica e científica, pela descriminalização das PAE e um maior acesso a métodos anticonceptivos, na perspectiva de um 8 de março de ações nacionais para derrotar o “Escudo contra o aborto”.

  • Aborto legal, seguro e gratuito! Educação sexual laica, científica e sem tabus! Descriminalização das PAE!
  • Melhores condições para as que decidam ser mães!
  • Casamento igualitário! Fora JOH e seus deputados pró-vida!

Tegucigalpa, MDC
27 de janeiro de 2021

Notas:

[1]  Socialização do projeto “Escudo contra Honduras” no qual participaram unicamente a Igreja Católica, o setor Pró-vida, e a confraternidade evangélica de Honduras.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Ver pronunciamento completo em: https://www.facebook.com/Sociedad-de-Ginecologia-Y-Obstetricia-de-Honduras-1769137223407904/

Tradução: Lilian Enck

 

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