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Palestina

Israel e a crise dos reféns

março 25, 2025


Por Alicia Sagra |

A troca de reféns, uma parte central dos acordos de cessar-fogo, expôs a falsa narrativa de Israel sobre a crueldade dos  “terroristas” do Hamas.  As declarações sobre o bom tratamento, que vieram à tona com o beijo do refém israelense na testa do  soldado do Hamas, foram contundentes.

Esses eventos, que se tornaram virais nas redes sociais, e que a imprensa internacional não conseguiu esconder totalmente, contrastaram com a libertação de reféns palestinos, que foram libertados depois de anos, alguns de décadas, das terríveis prisões israelenses, ainda cheias de prisioneiros, muitos deles crianças e adolescentes.

A resposta do governo israelense. O escândalo da família Bibas

Nentanyahu e seu governo fazem tentativas desesperadas de combater a realidade que os reféns mostraram ao mundo. Para isso, afirmam que os reféns foram obrigados a fazer essas declarações e publica reclamações ridículas e de uma hipocrisia assombrosa, como as de uma família que denuncia que o refém libertado voltou muito magro, com 20 quilos a menos. O que eles esperavam depois de passar mais de um ano em uma região bloqueada por Israel para a entrada de alimentos, remédios e todo tipo de ajuda humanitária? Por causa desse bloqueio criminoso, um grande número de crianças, idosos e doentes palestinos morreram de fome e de todos os tipos de doenças. Ao contrário do que diz a propaganda israelense, este caso mostra como, em meio a essa terrível situação humanitária, a resistência palestina garantiu que os reféns não morressem de fome, o que obviamente não puderam garantir para a população como um todo.

Mas o contra-ataque onde Nentanyahu se concentrou foi no caso da família Bibas. Yarden Bibas foi capturado em 7 de outubro de 2023, junto com sua esposa Shiri (de origem argentina) e seus filhos, Ariel e Kfir Bibas.

Yarden foi libertado em 1º de fevereiro, como parte do acordo de cessar-fogo. Em relação à sua esposa e filhos pequenos, o Hamas informou que foram mortos, junto com seus captores, durante um bombardeio israelense em novembro de 2023. Em dezembro daquele ano, em uma troca de reféns, o Hamas se ofereceu para entregar os corpos dessa família.

O governo israelense se recusou a aceitar essa explicação e, agora, Nentanyahu lançou um forte ataque dizendo que Shiri, Ariel e Kfir Bibas haviam sido executados pelo Hamas. Detalhou publicamente o suposto “assassinato” dos menores em um discurso ao Comitê de Ação Pública EUA-Israel e já o havia denunciado em uma cerimônia militar na qual mostrou uma fotografia das vítimas.

Mas o ataque se voltou contra ele. De acordo com Ynet[1], a família Bibas enviou uma notificação formal ao gabinete do primeiro-ministro e a outras agências governamentais, exigindo que a divulgação de detalhes sobre as mortes de Shiri, Ariel e Kfir Bibas fosse suspensa. E ameaçando processá-los legalmente se continuassem a usar a desgraça de sua família para sua propaganda política.

A porta-voz da família, Ofri Bibas,  irmã de Yarden, expressou seu descontentamento por meio de um postno Facebook, no qual descreveu a divulgação da informação como “um abuso contra uma família que passou por 16 meses de inferno e ainda tem o pior pela frente”, negou que a família tenha autorizado as publicações e acrescentou: “Se eu pudesse dizer uma coisa a todos em nome da família Bibas, seria: calem a boca.” Ofri Bibas questionou repetidamente  a posição de Netanyahu sobre a situação dos reféns e o acusou de não se desculpar pelo que aconteceu com sua família.

Em 3 de dezembro, Yarden Bibas entregou uma mensagem de vídeo, alegando que sua esposa e filhos foram mortos em um ataque aéreo israelense – como dezenas de outros reféns israelenses – e implorou ao seu governo que negociasse sua liberdade para que ele pudesse dar-lhes um enterro adequado. Ele termina sua mensagem dizendo: Bibi (Nentanyahu) é o responsável pela destruição da minha família.

O governo israelense afirma que todas essas declarações foram coagidas pelos captores. No entanto, Yarden, agora libertado, não se retratou das mesmas e Ofri Bibas declarou que seu irmão Yarden considera que “o perdão deve chegar em primeiro lugar com o regresso de todos os reféns”.[2]

Apesar do pedido da família, Nentanyahu continua com suas declarações. Enquanto uma análise de Adar Weinreb, um pesquisador israelense independente e ex-soldado da IDF, chega a uma conclusão oposta:

Weinreb escreveu: “Embora Israel afirme que a família Bibas foi ‘brutalmente assassinada por terroristas’, uma análise mais detalhada das evidências disponíveis sugere o contrário. Dada a história de relatórios forenses enganosos de Israel, seu padrão estabelecido de matar reféns em ataques aéreos e a esmagadora falta de precedentes para militantes islâmicos executando crianças pequenas, acredito que a explicação mais provável, por uma margem significativa, é que eles foram mortos em um ataque aéreo israelense”.

E acrescenta: “as evidências disponíveis não indicam que crianças pequenas foram alvos sistemáticos do Hamas”, o pesquisador observa que em 7 de outubro, crianças menores de 13 anos “foram mortas a uma taxa sete vezes menor do que sua proporção na população, e crianças menores de 5 anos, como as crianças de Biba, foram mortas a uma taxa cerca de 11 vezes menor do que sua proporção na população”.. Enquanto isso, depois de 7 de outubro, Israel atacou tudo o que se movia em Gaza, o que obviamente incluía os reféns.

Weinreb destaca especificamente o caso de Noa Marciano, uma soldada de 19 anos do exército israelense “que sem dúvida foi morta por um ataque aéreo israelense” após ser capturada em 7 de outubro.  Após essa morte, o porta-voz militar israelense afirmou que o relatório de patologia mostrou que “Noa foi ferida pelo ataque, mas não fatalmente”, alegando que “de acordo com informações de inteligência, Noa foi levada para dentro do Hospital Shifa, onde foi assassinada por um terrorista do Hamas”.

 Ao que Weinreb observa: “Essa narrativa não faz sentido. Por que seus captores a levariam a um hospital com ferimentos não fatais para ser morta por um médico? O cenário mais plausível é que Noa foi ferida no ataque aéreo, foi levada para o hospital e morreu devido aos ferimentos.

Finalmente, conclui Weinreb, “entre os mais de 80 reféns libertados, o testemunho mais consistente é o medo constante de serem mortos por ataques aéreos israelenses”.[3]

O Procedimento Hannibal

Este é um procedimento pelo qual os soldados são autorizados a abrir fogo contra civis, ou tropas, que estão sendo capturados para evitar que sejam usados como moeda de troca.

Os escritores de jornais Wyatt Reed e Max Blumenthal, em seu artigo[4] citam vários testemunhos sobre esse procedimento:

Argamani, uma refém israelense resgatada em uma operação, testemunhou na ONU sobre o momento que experimentou quando seu companheiro de cativeiro, Yossi Sharabi, foi morto durante um ataque aéreo israelense: “Eu não conseguia me mover.  Não conseguia respirar. Pensei que seria o último segundo da minha vida. Gritei alto para que alguém me ouvisse e ouvi Yossi gritando também. Mas depois de alguns segundos, parei de ouvir Yossi.”

Em novembro de 2023, um piloto de helicóptero israelense confirmou que o exército implementou um “Hannibal em massa” contra seu próprio povo.

Em janeiro de 2024, a mãe de um soldado israelense morto enquanto mantido em cativeiro em Gaza, Ron Sherman, revelou que ele havia sido morto por suas próprias forças quando o exército israelense bombardeou o túnel de Gaza onde ele estava.  

Noam Dann, sobrinha do refém Ofer Calderon, afirmou publicamente: “Eles estão realizando um procedimento Hannibal sobre nós. Meu gabinete, meu primeiro-ministro, meu ministro da Defesa, estão conduzindo operações em minha família, em cidadãos que foram sequestrados de suas casas – um procedimento Hannibal.

Menir Oz, um israelense libertado, disse na frente do gabinete: “Estávamos sentados nos túneis, estávamos com muito medo de que não o Hamas, mas Israel nos matasse, e então eles diriam – o Hamas matou você”.

O  procedimento Hannibal é algo totalmente reconhecido e aceito pela população de Israel. Tanto é assim que o sociólogo e professor universitário Yiga Levy[5] não hesita em declarar que “a decisão do governo de atacar Gaza, apesar da presença de reféns nas instalações bombardeadas, pode ser considerada uma extensão da diretiva ‘Hannibal'”[6].

Tudo isso nos faz concordar com  as conclusões de Weinreb, de que é mais provável que Shiri, Ariel e Kfir Bibas tenham morrido, como tantos outros reféns, durante um bombardeio israelense. E que todas as acusações de Nentanyahu são tão mentirosas quanto as declarações do médico forense israelense, que alegou ter visto os corpos de bebês sem cabeça depois de 7 de outubro.

A falsidade dessas declarações foi totalmente comprovada. O mesmo acontecerá com a atual campanha sobre a família Bibas. Há uma razão pela qual esta família, longe de dar seu apoio a Nentanyahu, ameaça processá-lo e reclama com ele por não ter se desculpado com a família dos reféns.

Qual é a razão para esta campanha desesperada de Nentanyahu?

Porque sua situação em Israel está longe de ser boa.  A situação econômica é muito ruim. O que aconteceu em 7 de outubro foi uma derrota estratégica retumbante[7], que criou na população uma situação desconhecida de insegurança. Embarcou em uma guerra genocida de um ano, que causou forte isolamento internacional, sem conseguir atingir seu objetivo de destruir o Hamas e teve que aceitar um cessar-fogo e a troca de reféns.

A crueldade do procedimento Hannibal, agora aplicado em massa, é típica do sionismo, assim como não hesitou em fazer um acordo com os nazistas durante o Holocausto, negociando com a vida dos judeus, agora não hesitou em realizar bombardeios maciços onde estavam os reféns, o que está provocando reações das famílias envolvidas.

Tudo isso gera  problemas e questões para Nentanyahu dentro do próprio sionismo. Por exemplo, o jornal Haretz menciona com preocupação o crescente boicote internacional no campo acadêmico. Sobre isso, o historiador israelense Ilan Pappé diz: “Esse boicote é real. É muito difícil ser um acadêmico israelense se sua carreira depende do apoio do exterior. A comunidade acadêmica internacional em geral tem sido muito eficaz em enviar uma mensagem muito dura à academia israelense. Mesmo que você não esteja envolvido em genocídio e opressão, você ainda faz parte disso.”

Na mesma entrevista, Ilan Pappé afirma: “Muitos judeus europeus estão saindo. Ninguém fala sobre isso, mas eu vi um número de um jornalista israelense sobre isso: meio milhão, um número enorme. Posso ver isso toda vez que vou ver meus amigos em Israel que moram em bairros com predominância de judeus europeus: eles estão se esvaziando…”

E conclui que: “Isso faz parte deste final do capítulo. Israel está em um estágio que me lembra o fim do apartheid na África do Sul. Antes da queda do apartheid, era particularmente cruel. E acho que esse comportamento, sem inibições, vai acelerar o isolamento de Israel do mundo.”[8]

É essa realidade que está por trás da campanha de mentiras  de Nentanyahu sobre a família Bibas. Ao mesmo tempo, sentindo-se protegido por Trump, ele continua seus ataques não apenas na Cisjordânia, mas também na Síria.

Como diz Ilan Pappé, o fim do estado sionista de Israel começou, mas esses finais “são particularmente cruéis”. O cessar-fogo foi uma derrota para Israel e uma vitória para os palestinos, porque a sua resistência armada não foi derrotada, porque puderam regressar à sua terra, porque recuperaram um número significativo dos seus reféns e porque, por enquanto, pararam os bombardeios, que são essenciais para a reconstrução e a organização.

Foi uma vitória amplamente celebrada pelo povo palestino, mas foi a vitória de uma batalha. A guerra continua. E os ataques genocidas continuarão até que o estado sionista e nazi-fascista de Israel seja destruído para ser substituído por um Estado palestino único, secular e não racista.

Para alcançar esse objetivo, é necessária a ação revolucionária de todos os povos árabes, liderados pela resistência palestina, e o aprofundamento da solidariedade internacional entre todos os povos do mundo.  Desmascarar essas campanhas mentirosas é a batalha pelo triunfo da resistência palestina.


[1] Ynet é o principal site de informações e conteúdo de Israel e faz parte do Yedioth Media Group, que também publica o jornal Yedioth Ahronoth.

[2] Publicado em Ynet.

[3] As conclusões de Weinreb são citadas no artigo de Wyatt Reed e Max Blumenthal, jornalistas e editores da Gayzone, publicado em 25-02-25.

[4] Zona Gay, 25-02-25

[5] Professor Sênior e Pesquisador, Departamento de Sociologia, Ciência Política e Comunicação, Universidade Aberta de Israel

[6] Zona Gay, 25-02-25

[7] Ynet, 24-02-25

[8] Entrevista com Ilan Pappé, La Vanguardia, 1º de março de 2025

Tradução: Lílian Enck

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