sáb abr 20, 2024
sábado, abril 20, 2024

Uma crise política crescente do Estado de Israel e do sionismo

Um artigo recente de Soraya Misleh explica a atual escalada de violência contra os palestinos a partir de uma análise histórica da essência do Estado de Israel, da continuidade da resistência palestina, e as implicações dos desastrosos Acordos de Oslo assinados pela direção palestina, em 1993[1]

Por: Alejandro Iturbe

Ao mesmo tempo, assistimos a uma crise política do regime israelense no contexto de uma crise mais geral do movimento sionista internacional. Quais são os processos que geram e se manifestam nesta crise? Quais são as possíveis dinâmicas?

Nas últimas décadas, houve uma mudança na estrutura social da população judaica de Israel e, nesse marco, de sua dinâmica política. A população imigrante de origem ashkenazim proveniente de Europa e de outras partes do mundo que foi a que “colocou o corpo” na construção e na “defesa” de Israel, nas décadas iniciais, agora está muito mais “pequeno burguesa” e muito menos comprometida com Israel.

Isto já era evidente na invasão israelense ao Líbano, em 2006. Por exemplo, a atitude do general Dan Halutz, então máximo comandante das tropas israelenses, mais preocupado com o destino de seus investimentos em ações, em plena reunião em que se planejava o operativo, era um sintoma do grau de deterioração da moral da cúpula das FFAA. Outro sintoma importante foi que numerosos altos funcionários civis e militares procuravam evitar que seus filhos prestassem o serviço militar em locais que poderiam entrar em combate e tentavam que o fizessem em postos seguros, nos edifícios centrais de Tel Aviv que, segundo o jornal sionista Haaretz, estão “longe da guerra e perto dos shoppings”.

À medida em que a realidade se mostra cada vez mais perigosa, muitos se cansam deste ambiente de “guerra permanente” e cresce o número de cidadãos israelenses que abandonam o país. Os números são cuidadosamente escondidos: alguns falam de dezenas e outros de centenas de milhares. Mas já e um fato que um número considerável de israelenses, muitos deles da elite intelectual e profissional, busca uma “solução individual” na emigração para os EUA e Europa.

A maioria sai discretamente, sem evidenciar que abandona o país (sem renunciar à cidadania israelense), através de projetos de estudo ou trabalhos temporários no exterior. Mas grande parte fica no exterior e só volta ao país para visitar brevemente suas famílias. Como um reflexo disto, também aumenta a deserção não explícita: a saída de jovens em idade militar, que tentam evitar as frentes e o serviço em territórios palestinos ocupados em 1967 ou libaneses.

Os “colonos” de origem russa

À medida em que uma parte dos descendentes dos “fundadores” já não está disposta a defender Israel com armas na mão (muitos deles, nem sequer a permanecer no país), a “base militante” de “defesa de Israel” e agressão aos palestinos vai se transferindo para os novos imigrantes, em especial os judeus provenientes da Rússia (cuja imigração foi encorajada, depois da queda da ex URSS).

É um setor que recebe muitos privilégios para que Israel tome pleno controle de Jerusalém e para ocupar e avançar na ocupação do território na Cisjordânia. Recebem casas grátis e muitos subsídios do Estado. Por isso, são os mais radicalizados e agressivos contra os palestinos e os mais dispostos a lutar pela “defesa de Israel”.

Entretanto, nesta reposição de “vanguarda”, o sionismo perde uma parte de seus melhores quadros políticos, de convicção ideológica muito maior, formados através de décadas.

Atualmente, estima-se que estes “colonos” de origem russa e suas famílias são mais de um milhão de pessoas. São a base eleitoral do partido Yisrael Beiteinu de Avigdor Lieberman, que assim obtém uma representação parlamentar importante em todas as eleições, imprescindível para formar uma maioria parlamentar governamental. Este partido se localiza na extrema direita do espectro político do sionismo e, utiliza seu peso para aliar-se com o Likud (direita tradicional sionista) de Benjamín Netanyahu e obter importantes postos em seus governos.

Ao mesmo tempo, embora minoritária, se consolidou a base eleitoral das organizações ultrarreligiosas, como o Hamafdal (Partido Nacional Religioso em hebraico), surgido da fusão de vários partidos menores. Os adeptos deste partido não trabalham e se dedicam apenas a “estudar a Torah (Bíblia hebraica)”. Por isso, exigem do Estado e dos governos, subsídios ou o pagamento de um salário mínimo para os hassídicos (como estes estudiosos são chamados). O Hamafdal usa seu peso eleitoral e parlamentar para negociar com os partidos mais fortes seu apoio para a formação de governo, em troca da manutenção desse benefício financeiro.

Uma sociedade cada vez mais “à direita”

Em numerosos artigos desta página e de outras publicações da LIT-QI, definimos que a “essência” do Estado de Israel é ser “um enclave militar a serviço do imperialismo”, construído sobre a base da usurpação do território palestino histórico e da expulsão de grande parte deste povo de sua terra. É um “enclave militar” para ameaçar e atacar os povos árabes.

Essa essência de Israel determina o caráter de sua sociedade e sua dinâmica política. Porque só mantém sua “unidade” no “combate ao perigo” e à ameaça que a rodeia. Ou seja, a resistência do povo palestino e, mais em geral, a luta dos povos árabes. Por isso, os governos israelenses sempre tentam sair de suas crises com uma nova agressão aos palestinos.

Esta dinâmica objetiva “para a direita” da sociedade israelense de conjunto, explica porque o Mapái (o partido da suposta “esquerda sionista”) retrocedeu e o centro político, há décadas, passou a ser o Likud e a figura dominante, seu líder Benjamin Netanyahu, formando governos em aliança com Lieberman e os ultrarreligiosos, com a política de avançar na agressão e no roubo da terra palestina da Cisjordânia (ou de agressões permanentes na faixa de Gaza)[2]

Três fatores de crise

Nesse marco, três fatores provocam crise nesse regime político. Um deles, é que a derrota na invasão ao Líbano representou o fim do mito da “invencibilidade militar israelense” e o impacto desta comprovação em uma sociedade acostumada a “ditar as regras”.

A isto se soma, a permanência obstinada e heroica da resistência do povo palestino que, apesar das permanentes agressões e da esmagadora desigualdade militar, continua agora nas “Tocas dos Leões”, apresentadas no artigo de Soraya Misleh. Ou seja, nem sequer neste caso, Netanyahu consegue uma “vitória definitiva” sobre o povo palestino. As condições nacionais e, mais ainda, as internacionais, o impedem de avançar para um genocídio em massa dos palestinos. Por isso, através das agressões, só pode oferecer “avanços a conta-gotas” na perspectiva de “uma guerra permanente” sem solução à vista.

Nesse marco, de fundo, aumentam seus choques com a população de origem ashkenazim, em especial com a geração mais jovem.  Em primeiro lugar, Israel sofreu o impacto da crise econômica internacional iniciada em2007/2008.  As receitas que recebe do exterior (ajuda militar dos EUA, arrecadações das organizações internacionais sionistas, exportações de armas e tecnologia de segurança) não são suficientes para cobrir os gastos de Estado e os benefícios que concede à população judaica. Além disso, o crescente desprestígio internacional de Israel e a campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) afetaram os possíveis investimentos do Ocidente e erodiu exportações de produtos israelenses, e suas vendas no exterior.

Então, os governos israelenses têm que fazer cortes no Orçamento. Essa pequena burguesia de origem ashkenazim se sente prejudicada frente aos benefícios que são mantidos para os “colonos” russos e os ultrarreligiosos. Uma insatisfação que já havia se manifestado no movimento dos “indignados” que originou uma onda de mobilizações em 2011[3].

Em segundo lugar, no marco de sua política de extrema direita, o novo governo de Netanyahu (que assumiu em dezembro passado), também ataca algumas liberdades democráticas que a população judaica de Israel está acostumada a ter. Por exemplo, a atual onda de mobilizações foi iniciada por causa do anúncio do fechamento da emissora pública Kan e de uma reforma judicial que retiraria a independência da Justiça. Foram impulsionadas pelas organizações opositoras, jornalistas, cineastas, intelectuais e até economistas (indignados porque a política de Netanyahu prejudica os investimentos estrangeiros e as exportações)[4].

Então, partindo destas contradições na sociedade, assistimos a uma crise do regime político que se expressa em uma flutuação e alternância de governos que não conseguem consolidar-se. Em 2021, caiu uma coalizão liderada por Netanyahu ao ficar em minoria parlamentar. Seguiu uma coalizão mais “à esquerda” que incluía até representantes da força política dos árabes que vivem em território israelense e têm uma espécie de “cidadania”. Netanyahu consegue revertê-la (também por via parlamentar) em dezembro passado e assume novamente o governo com uma coalizão considerada “a mais direitista da história de Israel” e, poucos dias depois tem início estas mobilizações enfrentando algumas de suas medidas. Como é tradicional nele, Netanyahu e seus aliados à direita tentam sair desta crise com maiores agressões aos palestinos.

Uma crise no sionismo em nível internacional

O movimento sionista em nível internacional (baseado nas comunidades judaicas em outros países) também vive uma crise, especialmente nos EUA, onde está a maior comunidade judaica fora de Israel. Cada vez são maiores os setores (especialmente jovens) que sentem repugnância com os crimes do sionismo, simpatizam com o sofrimento dos palestinos e sentem a “necessidade” de uma “saída pacífica” que “reconheça “ os palestinos e comece a negociar com eles [5].

Muitos, por exemplo, aderem ao BDS. Tendem a localizar-se na “ala esquerda” do Partido Democrata e, a partir dali, impulsionam e pressionam por esta política. Com certeza, se chocam contra a tradicional “defesa incondicional de Israel” do imperialismo estadunidense, incluindo a direção democrata. Mas a contradição existe e obriga os governos democratas a proporem a Netanyahu (mesmo que seja a nível formal) que pare as agressões e abra algum tipo de negociação. Netanyahu compreende que é um pedido puramente formal e continua fazendo o mesmo.

Um marco mais favorável

É possível que este debate sobre o que fazer com os palestinos também acabe se expressando dentro do próprio de Israel. O concreto é que esta crise política (nacional e internacional do sionismo) é um dado positivo. Porque a luta palestina contra o Estado de Israel e o sionismo (e toda a solidariedade que buscamos construir com essa luta através da campanha BDS) não enfrenta um bloco sólido e sem fissuras, mas um inimigo com rachaduras crescentes.

O que nos leva à necessidade de aprofundar esse apoio e essa solidariedade, buscando em cada país a formulação concreta, exigindo a ruptura de relações diplomáticas dos governos, como foi feito na época contra o regime do apartheid sul africano. No caso do Brasil, por exemplo, é evidente que devemos denunciar e combater os muitos acordos de compra de armas e tecnologia (que os governos de Lula e do PT mantiveram).

Em um próximo artigo abordaremos nossa proposta programática para a questão Palestina/Israel, que já formulamos em muitos materiais[6].


[1] https://litci.org/pt/2023/02/02/com-sangue-nos-escrevemos-para-a-palestina/

[2] Sobre esta questão, recomendamos ler, entre outros artigos, “A questão palestina; ponto central da revolução árabe” em Marxismo Vivo Nueva Época No2 (São Paulo, Brasil, 2011).

[3] https://elpais.com/internacional/2011/07/21/actualidad/1311199207_850215.html

[4] https://www.dw.com/es/israel-miles-de-manifestantes-en-tel-aviv-contra-el-nuevo-gobierno-de-netanyahu/a-64319814

[5] Ver, por exemplo https://mondiplo.com/israel-se-aleja-de-los-judios-estadounidenses

[6] Ver, por exemplo, o artigo da referência 2.

Tradução: Lilian Enck

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