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sexta-feira, março 29, 2024

A invasão da Ucrânia, as organizações palestinas e a maldição dos novos czares

Publicamos a versão em português do artigo do jornalista palestino Tamer Khorma que analisa as posições das diferentes organizações palestinas relativas à invasão da Ucrânia pelas forças russas para conhecimento do público de língua portuguesa. Esclarecemos que as opiniões da autor não necessariamente refletem as posições da LIT-QI.

Escrito por Tamer Khorma – original publicado em 10/03/22

A luta contra a guerra e sua origem social, o capitalismo, pressupõe o apoio direto, efetivo e explícito às lutas e às guerras dos povos oprimidos e colonizados contra o imperialismo. A posição de neutralidade equivale a apoiar o imperialismo.” (Leon Trotsky – resolução sobre o congresso antiguerra do Bureau de Londres, julho de 1936).

Liberdade, em seu verdadeiro significado político, não pode ser conquistada enquanto houver opressão e exploração, enquanto não estivermos livres de toda forma de ocupação, usurpação e dependência do imperialismo. Este não se limita apenas aos “yankees” ou ao velho continente, como o movimento stalinista imaginava. O imperialismo chauvinista russo não é menos arrogante em suas investidas, podendo ser inclusive pior quando se trata do confisco de direitos civis, os quais foram conquistados pelas classes trabalhadoras durante as revoluções burguesas.

Quando o imperialismo, qualquer tipo de imperialismo, decide fazer uma guerra contra um povo e ocupar suas terras, isso é um ataque a toda a humanidade. Uma guerra é uma contradição fundamental aos interesses dos pobres e oprimidos do mundo, e até mesmo com sua existência. Portanto, é natural e evidente que um povo que já sofreu com uma ocupação tenha solidariedade com outro que sofre do mesmo mal. O que está ocorrendo no território da Ucrânia está iludindo várias forças que acreditam que Moscou é um “bastião anti-imperialista”, ao invés do imperialismo chauvinista da Rússia de Putin. Esse dilema moral é resultado de conclusões impostas por um pragmatismo vulgar.

O povo palestino, que sofre com uma Nakba (catástrofe) contínua desde 1948, sabe mais do que ninguém o significado de uma ocupação. Não é estranho a essas pessoas, que se lembram de heróis de sua história em sua revolução permanente e cotidiana, a solidariedade incondicional aos ucranianos que enfrentam a ocupação russa. Algumas organizações que abandonaram a estratégia da revolução, seja por se render às soluções temporárias da Autoridade de uma terra sob ocupação [Autoridade Palestina], ou por capitular aos cálculos políticos regionais e internacionais de Teerã [capital do Irã] e de Moscou, acabam seguindo a política dos novos Mulás [líderes islâmicos iranianos] ou dos novos Czares.

Nos tempos em que algumas organizações palestinas se limitam ao silêncio e se recusam a fazer declarações que rejeitem a invasão Russa à Ucrânia, a Frente Democrática (FDLP) aplaude Putin, e anuncia apoio explícito à invasão Russa em uma declaração oficial, que diz: “É direito da Federação Russa, como direito de todos os países e povos do mundo, para garantir sua segurança nacional, e para defender sua liberdade e independência política e econômica diante da política de expansão agressiva da OTAN, que visa cercar a Rússia de bases militares.”

O site oficial da Frente Democrática (FDLP) ainda traz as citações de Putin, em que ele declara: “O objetivo da Rússia é proteger seu povo que, por oito anos, foram submetidos a maus tratos e genocídio pelo regime de Kiev”. Mais uma mentira inventada pelo novo Czar!

Não há dúvidas de que a OTAN é um dos braços mais sujos do imperialismo Europeu e Norte Americano. Mas o imperialismo russo, e seu braço militar representado pela aliança CSTO (Organização do Tratado de Segurança Coletiva) dirigido por Moscou, reprimiu o levante popular do Cazaquistão há apenas dois meses, após ter apoiado o regime autoritário de Lukashenko em Belarus. Também não esquecemos dos aviões de Putin que bombardearam o povo sírio para proteger seu fantoche Assad.

Então, qual é a “proteção” que a Frente Democrática (FDLP) de Nayef Hawatmeh fala em sua declaração? Não é a invasão russa na Ucrânia, que reproduz a barbárie chauvinista, o mais lindo presente e a melhor justificativa que poderia ser dada para a OTAN!? A Rússia estava se protegendo quando ocupou a Criméia em 2014? Ou quando a Ossétia e a Abkházia foram tomadas da Geórgia em 2008?

A catástrofe é tão grande que não foi apenas a Frente Democrática que caiu nos braços de Moscou. O Partido do Povo Palestino (antigo Partido Comunista) publicou em suas redes sociais que seu secretário geral, Bassam al-Salhi, telefonou há alguns dias para o minístro das relações exteriores russo, Mikhail Bogdanov, quando afirmou que seu partido é solidário à Rússia.

Nessa ligação, al-Salhi absolveu Putin de qualquer responsabilidade pela invasão da Ucrânia ao dizer que “rejeita os planos dos Estados Unidos da América e da OTAN que provocaram essa guerra”. Ao que ele acrescentou que defende “uma solução pacífica para a crise na Ucrânia que atenda aos interesses tanto do povo russo quanto ucraniano.”

A posição do Partido do Povo pode parecer mais equilibrada do que a da Frente Democrática, mas ambos escolheram se alinhar às trincheiras de uma das forças imperialistas mais fortes do mundo, às custas do derramamento de sangue do povo ucraniano, cazaque, bielorrusso, georgeano, sírio, etc., como se o internacionalismo estivesse fora dos interesses desses partidos. Essa posição não é diferente daquela dos partidos social-democratas que traíram a classe trabalhadora e implodiram a segunda internacional durante a primeira guerra mundial.

A Frente Popular (FPLP) não emitiu nenhuma declaração em apoio ao regime de Putin e sua invasão à Ucrânia. Apesar disso, publicou um editorial em seu site oficial em 24 de fevereiro com o título: ” Ucrânia e a Saia-Justa”[1]. O texto interpreta a invasão como um “ataque preventivo para evitar que a Ucrânia entre na OTAN”. Também justificou a anexação da Criméia porque Putin estava “receoso de que os EUA em particular e o ocidente em geral, estarem utilizando a Ucrânia para ameaçar a Rússia e limitar suas ambições, especialmente sua aliança com a China, e sua missão de restaurar um pouco das relações com os países do Oriente Médio ao se aliar fortemente com o campo sírio desde 2015, se transformando em um fator decisivo para o conflito“.

A justificativa para a ocupação de terras ucranianas e a intervenção sangrenta na Síria, que foi uma posição defendida pela esquerda stalinista, só pode ser considerada como um alinhamento cego com o imperialismo russo. Esse posicionamento ignora completamente o fato de Putin ser um aliado estratégico do sionismo, como foi Stalin, e ser adorado pela direita ocidental alinhada com o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, o dono do projeto do “acordo do século”, que moveu a embaixada de seu país de Tel-Aviv para Jerusalém!

Quanto ao movimento Fatah, que está reduzido à Autoridade (ANP) em Ramallah, ele não publicou nada que valha a pena ser mencionado sobre esse assunto. De qualquer forma, é natural que a direção desse movimento não assumam as mesmas posições daquelas organizações de esquerda alinhadas com o imperialismo russo. Seu presente e futuro estão nas mãos do império ianque, com base nos seus interesses de classe.

Mas, se afastando das posições dessas direções, o movimento tenta jogar uma luz na questão da ocupação da Palestina, em meio à preocupação mundial sobre a crise na Ucrânia, ao exigir que “os países do mundo, as Nações Unidas e o Conselho de Segurança devem condenar os crimes de ocupação de Israel contra o nosso povo, com os mesmos critérios”. Ainda acrescenta: “O sangue palestino é um sangue de segunda classe? A humanidade é classificada segundo sua raça e cor?

Já o Hamas negou que tenha feito as declarações que lhe foram atribuídas pelo líder de seu bureau político no exterior, Khaled Meshal. Ele havia declarado que “Putin deveria parar com a invasão da Ucrânia e o assassinato de civis”. O líder do movimento, Hisham Kassem, disse que Meshal “não fez nenhuma declaração a nenhuma mídia referente à crise na Ucrânia”.

Apesar disso, o movimento não escondeu sua felicidade  com aquilo que chamam de “pluralismo internacional”, como afirmou o chefe de relações internacionais, Moussa Abu Marzouk no Twitter:

Uma lição da guerra russo-ucraniana é que a era da ‘dominação unilateral dos EUA’ acabou. Os EUA não estão em uma posição de declarar guerra à Rússia, porque não é o único tomando decisões na política internacional. Agora podemos falar sobre o futuro da entidade sionista.

Quanto à organização Jihad Islâmica, ela se contentou através do site Palestine Today com a informação da mídia sobre o aumento da imigração de judeus ucranianos desde o início da invasão, onde o número de novos imigrantes já chega a 1.555. O movimento também salientou os vídeos em que o presidente ucraniano Vladimir Zelensky convocou os judeus de todo o mundo a não se silenciar sobre o assassinato de civis na Ucrânia.

De qualquer forma, é natural que a ocupação sionista tente tirar vantagem sobre o que está acontecendo na Ucrânia. Assim como fazem em qualquer parte do mundo, em benefício do projeto de expansão dos assentamentos. Para além disso, não é um ocupante quem deveria apoiar um povo que está sendo ocupado e morto. O melhor seria que o povo palestino, que está sofrendo com uma ocupação, expulsão de suas terras, e uma Nakba contínua, pelas mãos do sionismo, um aliado dos imperialismos americano, europeu e russo. Essa é a mais sincera expressão de solidariedade incondicional com qualquer povo que sofre com ocupação em qualquer parte do mundo.

O Sionismo está colhendo os frutos da invasão de Putin na Ucrânia, assim como havia feito anteriormente com o antissemitismo dos Czares russos, como se a história se regulasse pela lei do eterno retorno! O chauvinismo russo, como todas as expressões da brutalidade do sistema capitalista mundial, se mantém cometendo crimes contra os povos da terra. O mesmo sistema que produziu essa barbárie está tentando se exonerar da culpa por lamentar suas vítimas, ao mesmo tempo que força os palestinos, e outros povos oprimidos, a pagar a conta de seus crimes!

A libertação da Palestina não pode ser atingida através da dependência de qualquer potência imperialista. A revolução internacional contra essa ordem mundial, que se alimenta pelas guerras e escravização dos povos, é o único caminho para a liberdade, é aquele que unifica as lutas na Palestina, na Ucrânia e em qualquer outra parte. Eles sofrem com a ocupação imperialista e a força bruta. Teria sido muito mais útil para as organizações palestinas, que escolheram o lado de Putin, se tivessem se aliado ao povo ucraniano que está enfrentando o chauvinismo de Russo e as ambições da OTAN, que quer transformar a Ucrânia em uma semi-colônia para para suas forças militares.

Na batalha entre duas potências imperialistas, cada lado tem seus interesses, e nenhum deles é o interesses dos povos. O alinhamento nas trincheiras de qualquer uma das forças hostis à revolução internacional, e portanto do futuro da humanidade na terra, somente pode ser descrito como um pragmatismo vulgar, o que leva apenas a uma crise moral e a uma alienação sobre a essência da questão: a questão da liberdade.

As opiniões expressas nesse texto não necessariamente refletem as opiniões da LIT-QI.

Traduzido por Rafik Abdallah

Referências:

[1] https://www.alkhaleej.ae/2022-02-23/%D8%A3%D9%88%D9%83%D8%B1%D8%A7%D9%86%D9%8A%D8%A7-%D9%88%D8%A7%D9%84%D8%A8%D8%B7%D9%86-%D8%A7%D9%84%D8%B1%D8%AE%D9%88%D8%A9/%D9%85%D9%82%D8%A7%D9%84%D8%A7%D8%AA/%D8%A7%D9%84%D8%B1%D8%A3%D9%8A

 

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