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sexta-feira, março 29, 2024

Paraguai| Capitalismo periférico e pandemia

Desde 5 de março, milhares estão saindo às ruas em Assunção e outras cidades paraguaias cansados da corrupção e da negligência que o governo colorado de Mario Abdo Benítez deixou evidente diante da pandemia da Covid-19. A decadência insuportável das condições de vida de milhões de pessoas e o colapso sanitário são, categoricamente, responsabilidade do governo e do parlamento. Por isso, o povo trabalhador se manifesta de modo contínuo pela saída de Marito do poder, pelo completo rechaço ao magnata mafioso Horacio Cartes, e tudo o que é ligado ao funesto Partido Colorado, em suma, contra “todos eles”.

Por: Daniel Sugasti

Partindo de um decidido apoio aos protestos, é preciso ir mais fundo e entender que a corrupção e a “má gestão” diante da dupla crise, sanitária e econômico-social, são produto inevitável da natureza do modo de produção capitalista que impera no Paraguai e no mundo.

Mario Abdo e os demais governos burgueses, neste sentido, cumprem a tarefa de administrar a economia e a política dos Estados nacionais de acordo com a lei de ferro do capitalismo: a ganância a qualquer custo, o lucro de um punhado de magnatas construído em cima de uma montanha de mortos pelo vírus ou pela fome. Em resumo, os gabinetes e os parlamentos não passam de gestores do genocídio que está em curso.

Todos eles seguem à risca o mandamento de que a economia e os negócios dos capitalistas devem continuar, independentemente dos que morrerem infectados. Como se fôssemos gado de suas fazendas, esperam que o vírus se transmita sem maiores obstáculos até alcançar a “imunidade de rebanho”.

A pauperização da saúde pública como método para justificar a privatização de um direito

No capitalismo, a saúde, um direito humano, é transformada em mercadoria. Só é atendido quem pode pagar pelo “serviço”.

Segundo dados de 2018, 73% da população paraguaia não possui nenhum tipo de cobertura médica. No campo, essa cifra atinge 86%[1]. Em meio a esta realidade espantosa, a saúde privada, que cobre cerca de 7% da população, foi crescendo a expensas da saúde pública, e não poucas vezes com recursos do próprio Estado.

Entre 2010 e 2019, o Estado paraguaio destinou US$ 400 milhões para contratar seguros privados distribuídos entre quatro das principais empresas do ramo: Asismed S.A., Santa Clara Medicina Pre Paga S. A., hoje denominado Sanatório Britânico S. A., Protección Médica S. A. e Servicios Médicos Migone S. A., que oferecem serviços a cinquenta instituições estatais[2].

A negligência e a indolência que os governos demonstram é, na realidade, uma política deliberada: manter a saúde pública em condições catastróficas, como forma de justificar a necessidade do setor privado para “prestar um serviço completo e verdadeiramente eficiente” que o Estado não pode oferecer.

Estas empresas privadas, além de encher seus bolsos com o dinheiro público por meio de licitações fraudulentas, sugam o dinheiro dos pacientes, sobretudo aqueles que precisam de tratamentos complexos. Existem centenas de denúncias não só de negligências médicas em hospitais privados, como de custos exorbitantes pela assistência médica[3]

A coisa é muito simples, se o Estado garantisse um sistema de saúde pública, universal, gratuita e de qualidade, a saúde privada perderia sua razão de existir. O problema é que, sob o capitalismo, o direito à saúde é incompatível com a sede de lucro dos empresários.

Esta é a razão profunda do desmonte deliberado do sistema de saúde pública, completamente sobrecarregado, incapaz de fazer frente à demanda descomunal por leitos de terapia intensiva, medicamentos e insumos básicos, profissionais especializados e, sem falar de vacinas. O estado da saúde pública é o de um paciente que respira artificialmente.

Primeiro os lucros … a saúde pode esperar

Esta realidade, ao mesmo tempo em que expressa a lógica do “morram os que tiverem que morrer, mas a economia não pode parar”, é uma excelente oportunidade para que alguns ricos fiquem ainda mais ricos.

O conhecido crédito internacional de 1.6 bilhões de dólares, aprovado há um ano e questionado nas ruas, foi dilapidado [4]. Este caso, na verdade, não teve um desenlace diferente do que mostra toda a história da dívida interna e externa: não foi pedido pelo povo, nem foi utilizado para melhorar a vida do povo. Ficou com os de cima.

O governo colorado executou apenas 41% dos 426 milhões de dólares destinados à saúde pública pela lei de emergência sanitária [5]. Mas a realidade é que não se sabe no quê gastaram esse dinheiro – tendo em conta o desabastecimento de insumos indispensáveis nos hospitais – nem onde está o resto. A única certeza é que eles pretendem que essa dívida seja paga pela classe trabalhadora.

A questão dos medicamentos e insumos é outro caso de negociação entre setores da classe dominante. O ultrajante não são só as formas “descaradas” de corrupção, a grotesca “fuga de medicamentos” que implica o roubo direto – via redes criminosas que envolvem empresas privadas e altos funcionários estatais – das farmácias dos hospitais. Existe, também, o roubo legalizado pelo mecanismo das licitações. Por exemplo, para medicamentos e insumos básicos o Estado paraguaio atribuiu ao grupo Ferreira em torno de 12,7 milhões de dólares; ao grupo Scavone, 6,2 milhões de dólares; e ao grupo Harrison, 4,2 milhões de dólares. Para a construção de hospitais de contingência, a empresa Implenia recebeu 1,6 milhões de dólares; Tecnoedil, 1,2 milhões de dólares; e Jiménez Gaona, 749 mil dólares[6]. Para abastecer-se de atracúrio e midazolam, drogas chave para os pacientes intubados, o Estado contratou empresas como a FUSA SA, Vicente Scavone, Bioethic Pharma, entre outras. Mas está pendente que esses provedores, apesar de terem recebido seu pagamento, entreguem 50.818 unidades de atracurio e 356.638 de midazolam[7].

Os casos de Covid-19 aumentaram 66% no último mês e, com razão, as ruas perguntam: onde estão os fármacos e os hospitais de contingência? O mais provável é que está entre os ativos dessas empresas, porque nos hospitais os doentes lotam nos corredores.

O dinheiro público é repassado aos mesmos empresários de sempre. A economista Verónica Serafini denunciou há alguns dias que 60% dos contratos de compra de medicamentos são monopolizados por seis famílias[8]. A luta pelo controle do Estado é, no capitalismo, a luta para obter mais e melhores negócios.

O lucrativo negócio das vacinas 

A partir da rebelião popular, a exigência de um plano de vacinação tornou-se mais forte.  O Paraguai é o país mais atrasado da região neste aspecto. O governo conta com 4.000 doses da Sputnik V e 20.000 da CoronaVac, doadas pelo Chile. Ou seja, nada. Neste ritmo , 70% da população receberá as duas doses em setembro de 2053[9]

Em meio à crise e o “repentino” interesse do governo em adquirir imunizantes, subitamente apareceram três firmas paraguaias que alegam estar em condições de importar até três milhões de doses da CoronaVac da China. Só um detalhe: se uma dose custa no mercado internacional entre 10 e 13 dólares, estas empresas as oferecem ao Estado a 33 dólares. As empresas são Index SACI, Lasca e Quimfa[10]. A primeira, propriedade da família do ex -presidente e magnata Juan Carlos Wasmosy, é a melhor posicionada[11].

Os negócios capitalistas com as vacinas se veem favorecidos pela oposição de um punhado de países imperialistas à quebra das patentes internacionais. Na semana passada ocorreu uma reunião da OMC na qual a Índia e a África do Sul lideraram uma proposta de suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas, medicamentos e insumos hospitalares, ao menos enquanto durar a pandemia. EUA, a União Europeia e outros países ricos, como se esperava, rechaçaram o pedido veementemente. Entre as nações de “renda média e baixa”, o Brasil foi o único contrario a um acordo que rompa o monopólio que os países imperialistas e suas empresas de biotecnologia detêm sobre os imunizantes. Isto, na prática, implica na impossibilidade de aproveitar a capacidade industrial ociosa – como é o caso do Brasil – para acelerar a produção e distribuição de vacinas em escala necessária para derrotar a pandemia da Covid-19. A permanência das patentes, apoiada de forma escandalosa inclusive por burguesias submissas como a brasileira, só fará aprofundar o genocídio na periferia do capitalismo.

Isto coloca, com mais urgência do que nunca, a tarefa de lutar pelo fim das patentes das vacinas, única forma de deter o assassinato em massa que está em curso em todo o planeta.

Entretanto, o horror continua. Enquanto milhares são infectados – obrigados a sair para ganhar o pão de cada dia a pé ou no caótico transporte público -, e centenas precisam de leitos de internação, enquanto dezenas morrem todos os dias – não esqueçamos que os dados do Ministério da Saúde indicam unicamente os casos comprovados e registrados, isto é, na vida real são muitos mais -, no piso de cima continua a farra, a drenagem dos recursos públicos com destino direto às contas bancárias de um punhado de famílias.

A corrupção é inerente ao capitalismo

Para compreender corretamente a crise atual, é necessário ter em mente o nexo macabro entre corrupção e “má gestão”, e a lógica do capitalismo. A corrupção é inerente ao capitalismo, um sistema que surgiu e se mantém por meio do roubo e da violência contra os explorados/as e oprimidos/as. Do ponto de vista dos ricos e poderosos, a “má gestão” que desatou a ira popular é, na realidade, uma excelente gestão do assassinato massivo que eles promovem para salvar seus negócios.

As mesmas facções burguesas, os mesmos personagens que rasgam as vestes diante da “ineficiência do público” e exigem o “enxugamento do Estado” são os que realizam boa parte de seus negócios por meio de assaltos ao Estado. A razão é que o Estado, longe de ser uma entidade neutra e “para o bem comum”, tem caráter de classe. O Estado, nesta sociedade de classes, está a serviço do imperialismo e da burguesia local. Mas, atenção: por se tratar de um país localizado na extrema periferia do sistema capitalista mundial, o Paraguai possui uma classe dominante sempre disposta a acumular empoleirada no Estado, seja por meios “legais” (privatizações e dívida pública), seja por meios ilegais, isto é, através do assalto direto aos cofres públicos. Por este motivo, companheiros e companheiras, quando se trata de direitos e serviços públicos de qualidade exigem um “Estado mínimo”, mas quando se trata de fazer negócios e reprimir as lutas sociais invocam um “Estado máximo”.

O problema é a ANR, Marito, Cartes, a corrupção e a má gestão? Sem dúvida, todo o establishment  deve ser arrancado pela raiz. Mas, sobretudo, o problema é o sistema que os engendrou, isto é, o capitalismo periférico, valentão com o povo pobre e submisso aos interesses imperialistas e das burguesias mais poderosas da região. É o capitalismo agroexportador-pecuário-narcotraficante-contrabandista que administra a provinciana burguesia paraguaia.

Portanto, a queda do governo e o “fora todos” deve ser o primeiro passo para aprofundar e canalizar o presente processo de mobilizações para uma saída revolucionária e socialista que liquide o núcleo de todos os problemas: o capitalismo.

Notas:

[1] Ver: < https://www.abc.com.py/edicion-impresa/economia/2019/12/03/solo-el-27-de-la-poblacion-accede-a-un-seguro-medico/ >.

[2] Ver: < https://www.abc.com.py/edicion-impresa/politica/2019/07/09/seguro-medico-de-funcionarios-le-costo-us-400-millones-a-ciudadania/ >.

[3] Ver: <https://www.lanacion.com.py/mitad-de-semana/2019/08/28/asi-operan-empresas-de-medicina-prepaga-en-el-pais/ >.

[4] Em 2020, a dívida subiu para US$ 12,212 bilhões de dólares, equivalente a 34,2% do PIB. Para combater os efeitos da pandemia o governo endividou o país em US$ 1,990 bilhões.

[5] Ver: <https://www.ultimahora.com/nuevo-ministro-debe-mejorar-el-uso-los-fondos-salud-n2930300.html>.

[6] Dados de <https://controlciudadanopy.org/>.

[7] Ver: < https://www.abc.com.py/nacionales/2021/03/08/tras-crisis-van-concretando-compras-de-medicamentos-via-excepcion/ >.

[8] Ver: <https://twitter.com/veronica_serafi/status/1370345602110918676 >.

[9] Datos de <https://covidvax.live/location/pry> al 14/03/2021.

[10] Ver: <https://bit.ly/3rMQe69>.

[11] Ver: <https://www.hoy.com.py/nacionales/firma-paraguaya-podra-traer-3-millones-de-vacunas-en-15-dias-salud-debe-aceptar-hoy>.

Tradução: Lilian Enck

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