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sexta-feira, março 29, 2024

Mujica e Sanguinetti: muito mais que um abraço

Despedida do Senado e “cerimônia republicana”
“Uma hora de conciliação, uma hora de reafirmação democrática” foram as palavras de Julio María Sanguinetti (Partido Colorado) para definir a cerimônia parlamentar onde ele, junto com José “Pepe” Mujica (Frente Ampla), renunciaram ao senado de forma conjunta.

Por: Federico
A “despedida” no parlamento foi acertada depois da proposta feita pela vice-presidente Beatriz Argimón (Partido Nacional) aos dois dirigentes octogenários.
O evento foi amplamente divulgado pela grande imprensa em nível local como um sinal do “republicanismo democrático” e da “força institucional” do Uruguai.
A “sessão especial” resultou, como não poderia deixar de ser, num clima de fraternidade entre “colegas”, onde se trocaram elogios entre Mujica, Sanguinetti e os demais legisladores Brancos, Colorados, Frenteamplistas e até mesmo da extrema-direita Cabildo Abierto.
Após os discursos, finalizaram com aplausos, abraços e agradecimentos. Eles deixaram para trás todos os confrontos e acusações da campanha eleitoral, e todos se fundiram em sua cerimônia republicana altamente emocionante.
Mas como é possível que duas figuras com trajetórias inicialmente tão diferentes acabem em afagos dessa forma?
Sanguinetti e Mujica
Sanguinetti faz parte da nata política do Uruguai. Seu sobrenome está ligado às famílias da classe alta, assim como à família Batlle, Herrera, Larrañaga, Lacalle. Eles governam como uma dinastia há mais de 150 anos.
Foi ministro da Indústria e Comércio durante o governo do partido Colorado de Jorge Pacheco Areco em 1969, que, diante da crescente escalada de lutas dos trabalhadores e estudantes uruguaios, implementou as Medidas de Segurança, assassinando o que seria o primeiro mártir estudantil, Liber Arce.
Até os meses anteriores ao golpe de estado, ele fazia parte do governo de Juan María Bordaberry, defendendo o governo e as instituições que haviam declarado o Estado de Guerra Interna e a Suspensão da Segurança Individual,
Durante as suas presidências (1985-1990 e 1995-2000), foi responsável por aplicar duros ajustes aos trabalhadores, sendo responsável pelo aumento do desemprego, miséria e precariedade.
Sanguinetti foi um inimigo implacável do marxismo, que ainda se preocupa em dar por morto em não poucas de suas colunas, e da própria classe operária, da qual se gabava que nunca lhe havia ganhado uma greve.
Assim, seu nome e seus governos eram odiados pelos/as professore/as e pela grande maioria da classe operária, cujo repúdio afundou nas urnas Sanguinetti e o Partido Colorado nos últimos 20 anos, fazendo-o entrar em uma crise, cada vez mais profunda, que arrasta até hoje.
Sanguinetti é também um ferrenho defensor da impunidade dos militares e da teoria dos “dois demônios”. Teve a audácia de declarar que “nenhuma criança desapareceu no Uruguai” e que o Uruguai nada tinha a ver com o Plano Condor, tentando limpar a imagem das Forças Armadas do Uruguai diante das exigências internacionais de muitas personalidades pelo caso Gelman que atingiu seu governo.
Mujica, por outro lado, fazia parte de um importante setor da classe média, que, no caso dele, rompeu com o Partido Nacional para formar o grupo guerrilheiro Tupamaros na década de 1960.
Influenciados pela revolução cubana que abalou toda a América Latina e impactou toda a vanguarda operária e popular, Mujica fez parte de um setor que, apostando na luta armada, arriscou a vida com sua luta. Por isso, foi preso em condições subumanas e cruelmente torturado pela ditadura instaurada em 1973.
Infelizmente, a concepção de frente popular de Mujica e do setor majoritário dos dirigentes topáramos, seu desprezo e desconfiança pela classe operária e suas lutas, os levaram a negociar com os altos comandos militares, ao parlamentarismo e à defesa desse sistema capitalista em decadência, abandonando a luta pelo socialismo, a libertação nacional, o anti-imperialismo ou direitos humanos, como veremos.
O Pacto do Clube Naval e a “democracia exemplar”
Quando a ditadura começa a ser encurralada e ameaçada pela luta e mobilização operária, toda a burguesia vem em socorro das Forças Armadas para evitar que caísse abruptamente devido à mobilização, como havia acontecido na Argentina. Assim, busca-se uma “saída ordenada”, inspirada no Pacto de Moncloa da Espanha.
Foi assim que se desenvolveu o Pacto do Clube Naval, com Sanguinetti como um de seus grandes arquitetos, em 1984. Colorados, os altos comandantes militares e as lideranças da Frente Ampla chegaram a um acordo sobre uma “solução negociada” que deixou na impunidade os golpistas e levaram às eleições supervisionadas com candidatos e partidos proibidos em 1985, onde Sanguinetti acabaria obtendo seu primeira presidência.
Posteriormente, o Partido Nacional, que não participou da negociação por estar com o seu dirigente Wilson Ferreira Aldunate preso, também passaria a fazer parte do pacto de impunidade que se materializou na criação da “Lei de Caducidade da Ação Punitiva do Estado”.
Este grande pacto de impunidade é o que ainda hoje fundamenta o regime político uruguaio.
Os ex-guerrilheiros abandonam a luta armada para passar à “luta” eleitoral, entrando depois na Frente Ampla, que aos poucos também abandona seu discurso de confronto com blancos e colorados para se tornar um dos principais apoiadores desta exemplar “institucionalidade republicana” surgida do Pacto do Clube Naval, que deixou impunes os maiores assassinos da nossa história recente.
Esse “modelo institucional” é aquele que blancos, colorados e dirigentes da Frente Amplio passaram a defender como um “exemplo de democracia”, incluindo Mujica e a grande maioria dos ex-líderes guerrilheiros.
Abraço de impunidade
“Ele não foi um homem revanchista. Muito pelo contrário, e isso é uma contribuição”, disse Sanguinetti sobre Mujica na despedida do Senado.
Estas palavras de Sanguinetti baseiam-se no facto de que, durante os governos da Frente Ampla em geral, mas durante o de Mujica em particular, se tentou de diferentes formas “virar a página” dos crimes da ditadura. Algo que os governos brancos e colorados também tentaram insistentemente desde 85. Não foi à toa que os dirigentes frentistas, apesar de terem governado por três períodos com maioria parlamentar, se recusaram a anular a Lei da Impunidade.
Principalmente em relação a Mujica, devemos lembrar que foi ele quem promoveu Guido Manini Ríos a Comandante-em-Chefe do Exército em 2015, e o mesmo viria a formar, mais tarde, o partido de extrema direita e defensor dos torturadores Cabildo Abierto.
Foi Mujica quem declarou não querer “velhinhos na prisão”, referindo-se aos violadores dos direitos humanos. Foi Mujica quem visitou o General Miguel Dalmao no Hospital Militar, processado pelo assassinato do militante comunista Nibia Sabalsagaray, por motivos “humanitários”.
Foi Mujica quem nomeou o ex-Tupamaro Fernández Huidobro, ferrenho defensor dos militares, como Ministro da Defesa, que tratou os Parentes dos Desaparecidos como “doentes” e “mentirosos”.
Mujica colocava todo o seu prestígio ao serviço desta sinistra política de reconciliação com os algozes dos trabalhadores. É por isso que ele declarou durante a sessão que “em meu jardim não cultivo o ódio há décadas. Aprendi uma dura lição que a vida me deu: o ódio acaba sendo estúpido”.
Arriba as cerimônias e flores, abaixo a raiva e o confronto
O abraço entre Mujica e Sanguinetti nada mais faz do que simbolizar esta trajetória infeliz da direção da Frente Amplio, totalmente camuflada com aqueles velhos partidos corruptos e inimigos dos trabalhadores que uma vez disseram querer combater.
Como no final do conto de Orwell, Revolução dos Bichos, “os animais pasmos mudaram seu olhar de porco para homem e de homem para porco; e, novamente, do porco ao homem; mas já era impossível distinguir quem era um e quem era outro.”
Que esses dirigentes continuem com suas festividades em sua realidade republicana paralela. Enquanto isso, a situação se torna cada vez mais insuportável para os trabalhadores e setores populares que sofrem aos milhares de pobreza, desemprego e demissões. Que junto com a luta pela causa dos direitos humanos que continua sem respostas, os de baixo continuamos acumulando raiva. Raiva que, quando explodir, vai estragar mais de um abraço republicano no chiqueiro parlamentar.
Tradução: Lena Souza

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