Sáb Abr 20, 2024
20 abril, 2024

A guerra no campo de refugiados

 

Intervenção de Haitham, palestino-sírio de Yarmuk, no FSM (Fórum Social Mundial)

Abaixo transcrevemos a intervenção de Haitham, um ativista palestino de Yarmuk (Damasco, Síria) na atividade organizada pela Central Sindical e Popular-Conlutas do Brasil, no último Fórum Social Mundial da Tunísia, na qual também participaram companheiros/as da Corriente Roja (Espanha) e da LIT-QI.


“Meu nome é Haitham, sou palestino-sírio do campo de refugiados palestinos de Yarmuk de Damasco. Estou casado com a bela mulher que está aqui conosco. Dunia é meio síria, meio tunisiana, com isso podem compreender porque nós, os palestinos, entendemos, conhecemos e nos envolvemos na Revolução Síria. Porque nossas famílias, nossos familiares e amigos, centenas de nossos companheiros, são sírios que participaram e estão participando nesta revolução.

E, para mim, é um orgulho também estar hoje aqui na Tunísia, este país que deu a luz à primeira revolução da primavera árabe e derrubou seu ditador. Este acontecimento que teve lugar na Avenida “Habib Burgueba” foi algo inspirador a todos os cidadãos dos países árabes, creio que qualquer um de nós, que estamos aqui hoje, sabemos que temos vivido aquilo muito de perto, como se fosse algo realmente nosso. Também quero agradecer a nossos companheiros do Brasil da “CSP-Conlutas”, por tornar possível hoje, aqui, a presença do campo de refugiados palestinos de Damasco “Al-Yarmuk”, e dos campos de refugiados palestinos na Síria. Infelizmente, tivemos que fazer o contato com o Brasil para poder vir à Tunísia e fazer chegar a voz dos campos de refugiados palestinos na Síria.

Há muito que contar, mas vou tentar ser breve, é a primeira vez que falo em público, e na verdade, é a primeira vez que declaro meu nome real em público. Antes, na Síria, não podíamos usar nossos nomes reais em público.

Primeiro vou falar sobre o papel dos palestinos na Revolução Síria. Por que estamos na revolução? Primeiro por razões morais. Aos palestinos, assim como aos sírios, não nos fazia falta ver os canais via satélite “Al Jazeera” ou “Al Arabiya” para que manipulassem nossos cérebros. Bastava abrir a porta e ver os mísseis que caíam e ver os resultados de pessoas desabrigadas, feridas e vítimas fatais.

Em 23 de março de 2011 foi morto o primeiro mártir palestino do campo de refugiados de Deráa, seu nome era Wisam el Ghoul. Era um jovem de 25 anos que ajudava a quebrar o cerco à cidade de Deráa e fazer chegar alimentos e medicamentos às pessoas sitiadas pelo regime de Assad, quando um franco-atirador o assassinou. O franco-atirador não sabia a identidade de Wisam, se era palestino ou sírio, a única coisa que ele sabia era que Wisam levava uma caixa de alimentos às pessoas que estavam sendo bombardeadas com morteiros.

Com base nos trabalhos de ajuda humanitária aos nossos familiares, vizinhos e amigos sírios, que estavam expostos à repressão, aos bombardeios e obrigados a mudar-se, podemos entender o papel dos palestinos nos campos de refugiados. Seu papel era o apoio humanitário, ajuda no fornecimento de alimentos básicos, de medicamentos, fornecimento de refúgio seguro para os civis que se viam obrigados a fugir da repressão militar do regime.

Depois das manifestações pacíficas, nas quais participaram companheiros meus de Yarmuk e de outros campos, palestinos e sírios, grande parte dos manifestantes naquelas manifestações que duraram até 30 de março, eram os que se chamavam de “minorias” alauitas, ismaelitas, cristãos e drusos. Duas semanas depois das massivas manifestações, Buthaina Shaaban, porta-voz do regime, fez declarações nas quais apontava diretamente os campos de refugiados palestinos em Deráa e Latakia de serem os que estão “provocando” as manifestações, como se quisesse dizer que os sírios não se manifestam. Esta foi uma mensagem direta e inteligente do regime aos palestinos, para que não se envolvessem na revolução, um regime que sabe perfeitamente que os palestinos não iriam se calar diante do derrame de sangue dos sírios. Este regime enfrentou o povo desde suas primeiras manifestações pacíficas, assassinando e prendendo os manifestantes, era claro, tanto para o regime, quanto para nós, que os palestinos não iam ser neutros, porque como já me apresentei no princípio, eu, que nasci na Síria, tenho 33 anos, toda minha vida vivi na Síria, todos os meus amigos são sírios, a Palestina e a Síria me dizem respeito. E como eu, a maioria da minha geração e os mais jovens, pensam que nós não somos estranhos e temos relação, uma relação direta com o que está acontecendo enquanto seguem assassinando e enquanto seguem executando e oprimindo. Quero deixar claro que as “minorias” que participavam nas manifestações, eu os conheci em manifestações anteriores pelo apoio a Palestina e ao Iraque em Damasco, não os conheci em cafés. Os conheci nas manifestações.

Nós, os ativistas, quando começamos a nos envolver não tínhamos nenhuma intenção de arrastar os campos de refugiados palestinos a tomar uma postura contra ou a favor do regime. Só queríamos estar junto a nossos amigos ou nossos familiares sírios. O que podíamos fazer era transmitir-lhes nossa experiência como indivíduos. Mas o regime, com seu intenso bombardeio às zonas que rodeiam Yarmuk e os outros campos nas diversas cidades sírias, com o grande número de vítimas que produziram estes bombardeios e esta repressão, impulsionou os setores populares palestinos a solidarizar-se de distintas formas. Começaram a oferecer ajuda humanitária, médica e refúgio. Assim, podemos dizer que, até o final de 2011 já havia amplos setores de palestinos que haviam se envolvido de alguma forma na Revolução Síria. E, os lembro que, o dia 6 de junho foi o dia em que os palestinos regressaram às fronteiras ocupadas de Golan. Cerca de 4000 jovens palestinos foram enviados à fronteira, trinta jovens foram martirizados na fronteira, alvejados pelos israelenses, só para que Assad desviasse a atenção do que se passava em Homs e Deráa e as cidades sírias na fronteira de Golan. Aquele dia, a mão direita do regime, me refiro ao Comando Geral de Ahmas Jibril, aquele dia disparou aos funerais. Já se sabia que o regime ia utilizar esta força contra os palestinos dos campos. E assim foi.

Ao final de 2012 se constituiu a coordenadoria local de Yarmuk pela Revolução Síria, e assim nos envolvemos enquanto organização palestina dentro da Revolução. Nossos trabalhos foram, como já foi dito, de prestar ajuda humanitária a todos os afetados. Havíamos recusado nos armar, e recusamos inclusive a existência de forças armadas em Yarmuk. As milícias armadas do exército livre responderam positivamente a nossa recusa à existência de armas no campo. Éramos capazes de lidar com o regime e com as facções leais ao regime sem a existência de armas em Yarmuk. Mas o regime armava os civis, e estas facções se envolveram na repressão dos civis sírios. Ouçam palestinos [se dirige à juventude palestina que estava na sala]: invadiram as cidades sírias, detiveram o povo sírio e os fuzilaram. E os trouxeram a Yarmuk. Passaram 5 meses e nós insistíamos que não queríamos armas, mas havia quem insistisse em pegar as armas e em apoiar ao regime com estas armas. Não que o apóiem com declarações, manifestos e conferências televisionadas, não, queriam entrar nas zonas sírias, deter as pessoas, matá-las e voltar com seus cadáveres a Yarmuk. Estamos falando agora que há uns 1500 mártires palestinos na Síria. Entre eles, digamos que 1200 morreram pelo bombardeio dos aviões Mig e pelos morteiros e por execuções. Não estamos falando de 1500 mártires que morreram em enfrentamentos militares, não, são pessoas que morreram em suas casas. Estamos falando de que desde Julho de 2012, Yarmuk é alvo de uns trinta morteiros por dia, lançados pelo regime.

Em 16 de dezembro de 2012 estava na mesquita Abdulkader al Husaini vendo a destruição e os corpos destroçados de crianças e famílias sírias e palestinas que estavam refugiados nela. Ela foi atingida pelos bombardeios perto da escola de UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos) que também foi atingida pelos aviões do regime. Naquele momento eu não podia crer que o regime se enfrentava com o imperialismo e defendia a causa palestina, não posso acreditar quando não vi em minha vida um Mig combatendo em Israel. E, sem dúvida, voam no céu sírio matando civis palestinos e sírios.

Em 17 de dezembro tivemos outra Nakba (Catástrofe – assim foi denominada a expulsão e fuga de milhares de palestinos na guerra que levou à fundação de Israel em 1948), outra Nakba (Catástrofe) e outro deslocamento massivo, depois do bombardeio de Mig o povo tinha que abandonar o campo em duas horas. O regime deu um aviso para que se abandonasse Yarmuk. Estamos falando de umas 500.000 pessoas, entre elas 150.000 palestinos que se encontravam então em Yarmuk. Em duas horas o povo tinha que ir à procura de um lugar seguro, em parques públicos e praças públicas ou onde podia. Então entrou o Exército Livre, ao mesmo tempo em que as pessoas abandonavam Yarmuk o exército livre entrava. Os que se opuseram à entrada do Exército Livre ao campo de Yarmuk foram os ativistas palestinos, nos opúnhamos a eles, de Jabhat al Nusra ( milícia islâmica de orientação sunita e jihadista que atualmente opera na Síria), do Exército Livre e outros. As facções palestinas nos abandonaram, abandonaram Yarmuk antes mesmo que o povo, eles saíram com seus carros, enquanto o povo saía a pé.

Para finalizar quero dizer que, quando este regime cair, há contas a acertar com as facções palestinas. Quando este regime cair, uma nova era palestina vai começar, e vai começar dos campos de refugiados palestinos na Síria. Este passado que temos vivido com tanta marginalização de nosso papel, onde ninguém ouve nossa voz, isto vai acabar. Há mais de 500.000 palestinos na Síria, e são verdadeiros palestinos e verdadeiros sírios. E os considero como uma ponte da Palestina na Síria. A história tem que mudar, a história agora está mudando, tenhamos medo ou não, a história muda, e agora está mudando a favor dos palestinos, porque nunca, nunca os sírios vão se transformar em mercenários controladospelos EUA ou a UE ou Israel. Quem conhece o povo sírio, e nós, os palestinos, os conhecemos bem, sabemos que esta mudança está em benefício e a favor da Palestina livre, assim como está a favor da Síria e toda a região, com seus árabes, seus curdos, suas minorias étnicas e religiosas e todos os que vivem nela. Muito obrigado”.

Tradução: Jéssica Augusti

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