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terça-feira, março 19, 2024

Os cem anos da Primeira Guerra Mundial e uma lição teórica

A queda da Comuna de Paris tinha selado a pri­meira fase do movimento operário europeu e o fim da Primeira Internacional.  A partir de então começou uma nova fase. As revoluções espontâneas (…) os combates nas barricadas, depois dos quais o proletariado recaía de cada vez no seu estado passivo, foram então substituídos pela luta cotidiana siste­mática, pela utilização do parlamentarismo bur­guês, organização das massas, união entre a luta econômica e a luta política, união do ideal socialista à defesa persistente dos interesses quotidianos imediatos. (…) O partido social-democrata alemão tornou-se o representante, o campeão e o guardião deste novo método.[1]

                                                                                                Rosa Luxemburgo

Por Valério Arcary
A efeméride dos cem anos da Primeira Guerra Mundial é uma boa oportunidade para recordar uma lição teórica. Um desvio teórico, que pode parecer um tema abstrato, poderá ter consequências políticas graves. O tema da votação dos créditos de guerra pelos partidos francês e alemão da Segunda Internacional em 1914 remete à discussão incontornável das relações da classe trabalhadora com as suas representações políticas, seus sindicatos, seus comitês de fábrica, suas cooperativas, mas sobretudo com os seus partidos.

Como é bem conhecido, os lideres alemães que defenderam a unidade nacional para vencer na guerra ficaram em maioria na Internacional e, por mais que isso possa hoje parecer absurdo, tentaram fundamentar sua tática na autoridade de Marx e as posições que ele defendeu na I Internacional sobre a guerra franco-prussiana de 1870/71.[2]

Os internacionalistas eram uma ínfima minoria. Reuniram-se na conferência de Zimmerwald na Suíça. A epígrafe com a citação de Rosa Luxemburgo explicita que, com a guerra mundial, ruiu a estratégia gradualista que passou à história como “o método alemão”. Os internacionalistas se posicionaram, corajosamente, contra a corrente. Sua valentia permanece uma inspiração para os marxistas do século XXI.

A tese dominante no senso comum da esquerda argumenta, ainda hoje, que os partidos são, em maior ou menor grau a expressão da disposição das classes que representam. O argumento tem sido evocado, por exemplo, para justificar as escolhas táticas nas eleições no Brasil neste outubro de 2014, por aqueles que justificam a indicação de voto na candidatura Dilma Rousseff. Essa seria a vontade da maioria dos trabalhadores conscientes.

Para os que defendem esta perspectiva, correntes minoritárias que não se adaptam à pressão dos humores da classe trabalhadora estariam condenadas, indefinidamente, à impotência, e ao isolamento. Este tipo de determinismo defende, por coerência, que cada nação tem o governo que merece, e que cada classe tem o partido que merece. Não admira que este senso comum tenha alimentado ressentimentos contra a classe operária, porque a candidatura do PSDB conseguiu vencer até em grandes regiões metropolitanas, como São Paulo, onde o peso social dos trabalhadores assalariados é majoritário.

Nesse sentido, apresentamos, na seqüência, um fragmento representativo deste tipo de determinismo elaborado por Jacob Gorender, que tinha entre outros bons hábitos, a integridade intelectual, ou seja, o critério de ir até ao fim em suas conclusões:
 
Também é evidente a falsidade das explicações dos fracassos re­volucionários pela teoria da traição. Com grande freqüência, a lite­ratura de inspiração marxista atribui a “traidores”, individuais ou coletivos, a frustração de movimentos de massa e de lutas políticas. Há um esquema repetitivo, do qual se servem fartamente os publi­cistas trotskistas, que sobrevaloriza o impulso das massas, em um ca­so qualquer, e tenta convencer que a paralisação do movimento se deveu à traição de líderes ou partidos social-democratas, comunis­tas, stalinistas etc. A mais antiga e uma das mais célebres utilizações de tal esquema é a da atribuição do fracasso da Internacional Socia­lista, quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial, à “traição” dos partidos social-democratas europeus, principalmente os da Ale­manha e Áustria. O que nunca se coloca, neste caso, é que pela su­posta traição deve responder, em primeiro lugar, a classe operária desses países. Em sua grande massa, a classe operária européia pre­feriu defender seu Estado nacional no conflito bélico, renunciando ao projeto revolucionário que a obrigaria a se chocar com ele. Na verdade, foi o comportamento de apoio entusiástico dos trabalha­dores à política dos seus governos que empurrou os partidos social-democratas a trocar a defesa da paz pela participação na guerra im­perialista. Afirmar que a classe operária foi enganada, como se faz tantas vezes, conduz à conclusão de que ela não passa de um aglomerado de bobalhões desprovidos de reflexão própria e autonomia de decisão. Com isso não pretendo contestar a influência, positiva ou nega­tiva, das lideranças, quaisquer que tenham sido. Tão somente me empenho em evitar sua absolutização corrente e substitui-la pela de­vida relativização. (grifo nosso).[3]

Em primeiro lugar a análise que denuncia a traição do SPD não foi só de Trotsky, mas de Lenin. Isto posto, esta interpretação ultradeterminista coloca questões de duas naturezas distintas: históricos e teóricos. O primeiro diz respeito à avaliação do que foi o comportamento do proletariado enquanto classe diante da Primeira Guerra Mundial, suas responsabilidades na conflagração, e a conclusão do autor sobre a fragilidade dos trabalhadores diante do apelo do discurso nacionalista-imperialista.

É um fato inquestionável que a maioria do proletariado europeu apoiou a política beligerante de seus governos no início da guerra, e esse estado de espírito exerceu uma enorme pressão sobre os seus partidos. Mas, também é verdade que nem todas as classes operárias da Europa seguiram o caminho dos alemães e franceses: os suíços e os italianos não o fizeram, e não foram os únicos.

Mais importante, em pouco tempo, ou seja, em quatro anos, as atrocidades e aberrações exigidas pela guerra de trincheiras, deslocaram a opinião dos setores mais atrasados da classe operária, de apoio entusiástico para hesitação. E, depois para a hostilidade aberta contra a guerra. É vital compreender qual foi a dinâmica dos fatos, na sua articulação causal, de conjunto: a mesma classe trabalhadora alemã que sucumbiu ao apelo nacionalista no início da Guerra, protagonizou em 1918 uma fulminante revolução política democrática que derrubou o Kaiser e proclamando a República, retirou a URSS do isolamento. Não permaneceu prostrada, indefinidamente, diante do Estado.

Como sempre, em uma avaliação de um processo histórico, é preciso evitar perder a visão da totalidade do processo. Como se não fosse comum as classes exploradas e oprimidas agirem contra os seus interesses. Não só o fazem, dentro de certos limites, e por um certo período de tempo, até que os acontecimentos mesmos demonstrem pela força viva das suas conseqüências quem está sendo beneficiado, e quem está sendo prejudicado, como o fazem de forma recorrente. Não é nada excepcional. Ao contrário, essa é uma das regularidades históricas mais freqüentes e é, por isso mesmo, que a história tem um grau de incerteza e imprevisibilidade tão elevado.

Os trabalhadores assalariados têm que passar pela cruel escola do aprendizado político-prático para construir uma experiência e uma consciência de onde estavam localizados os seus interesses de classe.

A segunda questão é mais complexa, e diz respeito às relações do proletariado com suas direções: que o SPD, a social democracia alemã, se adaptou às pressões de sua base social é um fato incontroverso. O SPD não fez senão o que a maioria dos trabalhadores que o apoiavam queriam (e esperavam) que ele fizesse. É então razoável a conclusão que Gorender sugere, de que a teoria das “traições” seria, historicamente, pouco relevante?

O tema é sem dúvida crucial, e Gorender tem o mérito de provocar a discussão. A questão teórica, tal como ele a formula, permanece somente enunciada, mas não resolvida. Por quê? As responsabilidades dos sujeitos sociais não podem absolver as responsabilidades dos sujeitos políticos. São duas dimensões políticas e morais diferentes.

Partidos políticos são instrumentos de luta pelo poder. A luta entre as classes se expressa, também, na forma da luta entre partidos. Mas os partidos, inclusive, os partidos de esquerda podem desenvolver interesses próprios, diferentes dos interesses da classe que pretendem representar. A social democracia alemã de 1914 criou um aparelho de dezenas de milhares de funcionários sindicais e parlamentares que tinha privilégios materiais muito superiores ao modo de vida da classe operária. Quando o SPD votou os créditos de guerra, estava levando até às últimas consequências a sua adaptação ao regime do Kaiser que manteve o Reichtag aberto e funcionando, enquanto dez milhões de seres humanos caminhavam para a morte.

A burocratização social e degeneração política dos partidos de esquerda socialista teve a sua expressão pioneira no SPD alemão, mas depois transformou-se em um padrão internacional e histórico. Ela remete à dificuldade dos trabalhadores controlarem as suas organizações. Os trotskistas caracterizam este processo como crise de direção. Crise de direção significa que a classe operária tem imensas dificuldades de construir organizações à altura dos desafios que a defesa dos seus interesses exige. A maioria das lideranças que a classe produz em suas lutas são destruídas pela repressão, corrompidas pela cooptação, ou desmoralizadas pelos aparelhos. A traição dos interesses da burguesia por um seus líderes é uma anomalia, algo impensável. Mas a traição dos interesses dos que vivem do trabalho assalariado é algo rotineiro.

Manifesta-se, portanto, em especial em situações defensivas, um desencontro transitório, mas que pode consumir anos de experiências, entre as necessidades objetivas da classe trabalhadora, e o grau de consciência, ou seja, o estado de espírito, o humor, o ânimo, a disposição que a classe tem sobre os seus interesses. Essa defasagem pode ser muito acentuada pela razão arqui-conhecida de que o proletariado tem sempre que vencer uma enorme quantidade de obstáculos materiais, culturais, políticos e ideológicos para se afirmar como classe independente.

A democracia liberal não é um regime político de luta entre os iguais: as classes proprietárias lutam para exercer e preservar um domínio e um controle sobre a vida material, e, também, sobre a vida cultural e politica dos trabalhadores, em condições de superioridade que são incomparáveis. A burguesia luta por uma hegemonia sobre toda a sociedade sob a bandeira dos seus valores e seus interesses, que são sempre apresentados como os interesses de todos: ela não ambiciona somente dominar, ela quer dirigir.

Dirigir significa ter tal hegemonia que até as lideranças em que os trabalhadores mais confiam se posicionam no terreno da manutenção da ordem. A defesa da ordem passa pela transformação da presença parlamentar, que é uma tática útil, em uma estratégia, o que é incompatível com a luta pelo socialismo. O papel dos marxistas nas organizações dos trabalhadores deve ser sempre a defesa dos interesses dos trabalhadores. Mesmo quando a imensa maioria dos trabalhadores não o compreende, ou não encontra forças para agir em defesa de si mesma.

Por isso, a fórmula determinista simples que propõe resolver a questão da representação politica com a equação do reflexo – os dirigentes fizeram o que os seus eleitores queriam – é estéril. O problema é imensamente mais complexo, porque os trabalhadores têm a expectativa de que as suas direções vejam além do que elas mesmas foram capazes de perceber. Em geral, não perdoam os dirigentes que se adaptaram às pressões do momento e, ziguezagueando de acordo com as flutuações dos humores instáveis, falaram em cada momento aquilo que a maioria queria ouvir.

A história revela à exaustão que as classes podem ser impiedosas com os seus dirigentes. Esse julgamento severo, evidentemente, só se impõe diante de acontecimentos terríveis, que exigem enormes sacrifícios, que subvertem a tal ponto as circunstâncias da vida cotidiana, que fazem as grandes massas, em condições normais, politicamente, desinteressadas, entrarem no palco da história como personagens principais. Essas circunstâncias são as situações revolucionárias.

As correntes da esquerda socialista não atuam fora das pressões sociais da política: estão inseridos em uma ordem econômico-social desigual e, portanto, expressam maior ou menor capacidade de resistir às pressões das classes dirigentes da sociedade. Serão mais resistentes na medida em que estiverem mais próximos do trabalho de base, mais presentes nas lutas, mais instruídos no marxismo, e mais internacionalistas. Serão mais vulneráveis na medida em que estiverem mais distantes do proletariado, mais ausentes das lutas, mais ignorantes do marxismo, e mais nacionalistas.

Existe assim uma intransferível responsabilidade moral e política, em uma esfera diferente das responsabilidades das massas, que é própria das organizações políticas e suas direções. No caso dos partidos que se reivindicam da causa do socialismo, essa responsabilidade deve ser considerada, historicamente, ainda maior, dado a enorme dificuldade de uma classe ao mesmo tempo explorada, materialmente, oprimida, culturalmente, e dominada, politicamente, construir a sua independência.

Nesse sentido, quando o SPD apoiou os créditos de guerra, e defendeu perante à sua classe que os interesses do proletariado eram indissolúveis dos interesses da Alemanha, o SPD traiu os trabalhadores. Seus dirigentes não podem ser absolvidos pelas circunstâncias transitórias que levaram a maioria da classe a ter a mesma opinião.

Poucos anos depois, a maioria da classe percebeu que os seus interesses não eram os mesmos que o do seu governo. Mas tiveram que fazê-lo quase sozinhos, pelo caminho da experiência, porque não encontraram no seu poderoso partido um alerta. Enquanto os chefes do SPD mantiveram-se no Reichtag, o Parlamento, Rosa Luxemburgo foi para a prisão.

O mesmo critério deve ser usado para avaliar as correntes da esquerda socialista brasileira em 2014. Votar em Dilma Rousseff no segundo turno deste ano, depois de doze anos de governos de colaboração de classes, ainda que guardadas as proporções que separam a tragédia da comédia, equivale ao voto do SPD em 1914.

[1] LUXEMBURGO, Rosa. A Crise da Social Democracia. Lisboa, Presença, 1974. p.10/13.
[2] Esta posição de Marx foi recordada pela maioria da bancada parlamentar do SPD para votar os créditos de guerra em 1914, como se Marx tivesse alguma vez aceito que os interesses da Alemanha se confundiam com os interesses da classe trabalhadora alemã de forma indissolúvel. Como se poderá confirmar nos fragmentos na sequencia, os considerandos de Marx são muito mais complexos: “Se a classe operária alemã permite que a guerra atual perca o seu caráter estritamente defensivo e degenere em uma guerra contra o povo francês, o triunfo ou a derrota será sempre um desastre.” MARX, Karl. “Primeiro Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana” In Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume 2, p.54.  Mais claro ainda, neste outro fragmento, o critério de estrita unidade no campo militar, preservando a independência política, ou seja, delimitando-se do campo de Bismarck, e uma análise simplesmente visionária do perigo de uma política de anexações que seria a semente de uma nova guerra, mas com um custo histórico muito superior. Infelizmente, Marx estava certo. O cemitério de Verdun e seu meio milhão de sepulturas ficam na Alsácia, anexada por Bismarck em 1871: “Qualquer que seja o desenvolvimento da guerra de Luis Bonaparte com a Prússia, dobraram já em Paris os sinos pelo Segundo Império. Acabará como começou: como uma paródia. Mas não esqueçamos que foram as classes dominan­tes da Europa que permitiram a Luis Bonaparte representar durante dezoito anos a farsa cruel do Império restaurado. Por parte da Alemanha, a guerra é uma guerra defensiva, porém quem colocou a Alemanha no transe de ter que defender-se? Quem permitiu a Luis Bonaparte desencadear a guerra contra ela? A Prússia! Foi Bismarck quem conspirou com o mesmíssimo Luis Bonaparte, com o fim de esmagar a oposição popular dentro de seu pais e anexar a Alemanha à dinastia dos Hohenzollern (…) A influência preponderante do czar na Europa tem raízes em sua tradicional influência sobre a Alemanha (…) Por acaso os patriotas teutôes creem realmente que o melhor modo de garantir a liberdade e a paz na Alemanha é obrigar a França a lançar-se nos braços da Rússia? Se a sorte das armas, a arrogância da vitória e as intrigas dinásticas levam a Alemanha a uma espoliação do território francês, diante dela só se abrirão dois caminhos: ou conver­ter-se a todo custo em um instrumento aberto da expansão russa, ou, após breve trégua, preparar-se para outra guerra “defen­siva”, não uma dessas guerras “localizadas” de novo estilo, mas uma guerra de raças, uma guerra contra as raças latinas e eslavas coligadas.” (grifo nosso). MARX, Karl, Segundo Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana, in Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, volume 2, p.60/1.
[3]  (GORENDER, Jacob. Marxismo sem utopia. São Paulo, Ática, 1999. p.41).

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