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terça-feira, março 19, 2024

Enrico Berlinguer: do stalinismo ao reformismo, sempre contra as lutas operárias


Na semana que marca trinta anos da morte de Enrico Berlinguer, secretário do PCI de 1972 a 11 de junho de 1984, dia no qual em uma reunião em Padova ele foi golpeado por um AVC, foram organizadas uma série de celebrações seguramente únicas em relação às feitas com outros líderes da assim chamada primeira República.

Em Roma o secretário do Partido Comunista Italiano (PCI) foi homenageado com a exposição Enrico Berlinguer e o olhar dos artistas, exibido nas salas do Complexo Vicolo Valdina da Câmara dos Deputados; e até mesmo os Correios da Itália anunciaram a emissão de um selo comemorativo, no valor de 0,70 euro com uma tiragem de dois milhões e setecentos mil cópias. No dia do trigésimo aniversário da sua morte, numerosas foram as ruas e as praças dedicadas a Berlinguer. Mais ainda, a programação da resenha de filmes “Vinte de cinema” apresentou o documentário de vinte minutos “La voce de Berlinguer” [A voz de Berlinguer] feito por Mario Sesti e Teho Teardo, que em 2013 participou do Festival de Veneza, enquanto no seu Sky Arte Hd foi transmitido o “Era Berlinguer”, de Walter Veltroni, ao qual se seguiu o curta metragem “Enrico Berlinguer 1984-2014”, um percurso pelas palavras do homem político nos seus doze anos na secretaria do PCI. O filme foi projetado em primeira mão no curso da comemoração oficial que se realizou na Câmara em 12 de junho.

Enfim, a comemoração a Berlinguer foi sem dúvida grandiosa e teve grande audiência, seja pela máxima instituição parlamentar, seja por uma certa arte radical ou pelo mundo político onde, na última campanha eleitoral europeia, um pouco grotescamente, os dois gurus da política italiana, Beppe Grillo e Matteo Renzi (o mister Bean à italiana) foram ferozmente atacados por aqueles que reivindicam a herança política de Berlinguer e em particular a tão exaltada “questão moral”. Ao mesmo tempo, o que sobrou da esquerda reformista (do PRC – Refundação Comunista, ao SEL – Esquerda Ecologia e Liberdade) logicamente está exaltando Berlinguer: encarnação da política de colaboração de classes e governista que os orienta.

Mas não acertam as contas com a história

Mas estas comemorações organizadas com um caráter emotivo e simbólico para um secretário que a propaganda oficial pintou como o novo homem do comunismo e da esquerda italiana, que teria tido a coragem de entrar em confronto com a burocracia russa sobre a questão do compromisso histórico e sobre a chamada terceira via. Todas estas palavras e imagens difusas representam verdadeiramente a figura política de quem rompe com a geração dos stalinistas italianos dirigidos pelo secretário anterior Palmiro Togliatti?

A esta pergunta só se pode responder com a verdade se sua história for lida sob o ponto de vista do marxismo e da luta de classes. Por esta via, como veremos ainda que de modo breve, o berlinguerismo sempre permaneceu no interior do stalinismo italiano que, com seus contínuos zigues-zagues, em nome dos interesses materiais das burocracias russa e nacional, priorizou sempre a colaboração de classes contra a construção do socialismo pela via revolucionária: a política das “frentes populares” dos anos trinta, lançada por Stalin, antecipou em poucos anos na Itália o “partido novo” de Togliatti. Este foi o primeiro compromisso histórico (1945-47) com a burguesia liberal e a DC (Democracia Cristã) e foi o invólucro ideológico no qual amadureceu também o segundo compromisso histórico (1973-1978) assinado com o apoio de Berlinguer.

A colaboração de classes: bússola da política de Togliatti e de Berlinguer

“O nosso partido nunca se desviou de sua  linha unitária com os outros partidos de massa, o PSI (Partido Socialista Italiano) e a DC … Depois da libertação a DC foi o principal artífice da ruptura das alianças do governo com os comunistas”: assim Berlinguer escrevia na Rinascita de 9 de outubro de 1973.

Definitivamente, toda a linha do PCI no final da Resistência se inspirou no bloco estratégico com a burguesia liberal. Primeiramente, com a aliança no CNL (Comitê Nacional de Libertação) e com a linha desastrosa que devolveu as fábricas e o país à burguesia; e depois, de 1945 a 1947, entrando nos governos de unidade nacional com a DC, recolocando os capitalistas no posto de comando das fábricas, concordando com a liberdade para demissões, desarmando os partisans [1], anistiando os fascistas, reprimindo muitas das mobilizações que naqueles anos se desenvolveram em toda a Itália. E assim, quando o capitalismo montou novamente na sela e a DC consolidou uma relação de forças mais favorável, em 1947, o PCI foi expulso do governo.

Nos trinta anos sucessivos de “oposição”, toda a política do aparato do PCI tinha por objetivo reabrir o espaço para aquela colaboração governista. Definitivamente, a chamada “via italiana ao socialismo” foi por trinta anos o invólucro ideológico desta perspectiva. Os dois compromissos históricos, o de 1945 e o de 1976, se desenvolveram em condições muito diversas. Esquematicamente: o compromisso que foi firmado em 1945 refletia os interesses da burocracia stalinista e a necessidade de derrotar cada foco revolucionário para permitir aos aparatos moscovitas realizar os pactos e a divisão do poder com o imperialismo, antepondo, assim, as relações entre os Estados (isto é, os interesses da casta burocrática moscovita) à luta de classes. Por outro lado, em 1976, o compromisso de classe com a burguesia era principalmente movido pelos interesses específicos do aparato do PCI: administradores e parlamentares do principal partido “comunista” do ocidente.

Tanto é que a integração profunda na sociedade, na economia e no Estado tornou o PCI muito parecido à socialdemocracia, unidos pela semelhança de interesses materiais da casta burocrática, mas com um traço distinto: a ligação com a URSS que continuava, ainda que de forma mais tênue que nas décadas passadas. E continuava não tanto pelas ajudas recebidas (os famosos rublos que chegavam de Moscou), quanto pelo fato de que a burocracia do PCI crescia também eleitoralmente graças ao chamado “impulso” da revolução de Outubro (cujo crédito era conferido ao stalinismo, coveiro do bolchevismo). Em outras palavras, apesar da deformação grotesca da revolução de Lênin e Trotsky operada pelo stalinismo, reivindicar naqueles anos uma relação com Moscou significava facilitar a consolidação do aparato do PCI.

Um obstáculo na via da plena integração ao governo

Porém, quanto mais crescia a integração ao banquete do Estado burguês, mais crescia um interesse burocrático autônomo, diferente do moscovita, e mais a relação com Moscou se tornava um entrave e um obstáculo a um novo impulso para prestar serviços ao poder burguês, uma barreira que impedia seu ingresso no governo.

Uma dificuldade não ideológica, já que os programas reformistas do PCI e os poderosos vínculos de massa eram elementos positivamente valiosos para a burguesia. O que complicava as coisas eram as específicas relações com um bloco internacional, que exprimia interesses diplomáticos contrapostos ao imperialismo.

O PCI não foi um adepto do movimento de massas que se formou a partir de 1968, ao contrário, trabalhou arduamente para conter as suas potencialidades revolucionárias e se beneficiou delas nas eleições de 1975: não porque as massas quisessem com o voto apoiar a linha do novo compromisso histórico, mas, ao contrário, porque exprimiam pelo voto a necessidade de uma alternativa que a crise revolucionária de 68-69 exigia e colocavam as esperanças no principal partido da esquerda.

Um fator que se desenvolvia com a profunda crise que em 1974-75 viveu o capitalismo italiano: o redimensionamento da competitividade internacional sob o impulso do boom econômico do pós-guerra; as distorções provocadas pelo vínculo da DC com sua base social; o peso do clientelismo, a pesada administração do Estado, em conjunto com a elevada taxa de inflação (20%), foram todos elementos que registraram a necessidade da burguesia de abrir ao PCI, de novo, uma perspectiva de governo. Estes fatos mostraram a necessidade de uma nova realidade: foi La Malfa, secretário do PRI (Partido Republicano Italiano), representante quimicamente puro da linha da Confindustria, o principal artífice da manobra para recolocar o PCI no governo.

De novo no governo com a burguesia

E assim, em 1976, nascia o governo Andreotti que levou à “não confiança” do PCI; em 1977 o segundo governo Andreotti viu “convergências programáticas” com o partido de Berlinguer e, em 1978, o terceiro governo Andreotti marcou a entrada definitiva do PCI na maioria.

Para além de uma versão metafísica frequentemente apresentada do “compromisso histórico”, a sua natureza de fundo envolvia uma troca: Berlinguer usou a força dos movimentos de massas para abrir caminho em direção ao governo; enquanto a burguesia e a DC se abriram ao PCI para usá-lo como instrumento de enquadramento das lutas desenvolvidas no período de 1969-1975.

Também nessa fase a burocracia stalinista do PCI não poupou visões mistificadoras, recitando mais de uma uma vez a poesia de um “socialismo moderno” que, no entanto, se traduzia, muito mais prosaicamente, na política de “austeridade e sacrifícios”: aumento dos preços, transferência dos recursos do consumo aos investimentos; contrações salariais e combate à inflação como condição de maior competitividade; recusa ao assistencialismo e à ocupação improdutiva; política de austeridade salarial e aumento da jornada de trabalho apoiada pela burguesia industrial e a CGIL [Confederação Geral Italiana do Trabalho]; campanha contra a extrema-esquerda com grande repressão seletiva através de leis especiais.

É nesse contexto que nasce a linha do eurocomunismo. Em 1976 ocorreu uma conferência em Madri, que deu origem ao pacto com o Partido Comunista Francês, o Partido Comunista Espanhol e os partidos comunistas menores, britânico e grego, pelo qual Berlinguer lança uma mensagem clara à burguesia italiana, demonstrando estar disposto a ter maior autonomia nos confrontos com a URSS. Inicia assim o longo percurso para tornar  a burocracia stalinista italiana mais independente da burocracia stalinista russa e o PCI mais “confiável” (isto é, subalterno) à burguesia italiana, até a conclusão lógica daquele processo em paralelo com o colapso do stalinismo: a transformação do PCI em PDS, depois em DS e enfim em PD (Partido Democrático), em um corte progressivo não apenas da simbologia mas das próprias raízes de classe (ainda que deformadas) do partido. Um percurso que foi concluído com a plena conversão do velho partido operário-burguês em um partido completamente burguês e liberal. Mas vamos ordenar os fatos.

Em síntese, se o primeiro compromisso histórico, com Togliatti na secretaria do partido, foi dirigido pelo stalinismo, empenhado em 1945 em estabelecer novos compromissos com o imperialismo norte-americano na divisão do mundo em zonas de influência; o segundo teve uma nítida oposição da burocracia soviética, não por um surto de puritanismo ideológico (recitando o catecismo do “marxismo-leninismo” esvaziado de qualquer conteúdo realmente bolchevique), mas porque esta vislumbrava no progressivo distanciamento dos partidos comunistas europeus, e em particular do PCI, o reflexo distorcido de um processo de desagregação do stalinismo internacional.

Claro que, também nesse caso, Berlinguer e sua equipe não pouparam visões aparentemente altas da nova fronteira da construção do socialismo dizendo por exemplo: “É significativo que outros partidos comunistas e operários da Europa Ocidental tenham feito, através de uma pesquisa autônoma, uma elaboração análoga a respeito do caminho a seguir para alcançar o socialismo e sobre o caráter da sociedade socialista a ser construída em seus países. Esta convergência e estas características comuns se expressaram recentemente nas declarações que fizemos com os companheiros do PCE, do PCF e do PC da Inglaterra. É a estas elaborações e pesquisas de novo tipo que alguns dão o nome de eurocomunismo”. (Berlinguer, 1976). Em uma ocasião anterior, igualmente importante, no XXV Congresso do PCUS, em 27 de fevereiro de 1976, Berlinguer, sem utilizar a palavra “eurocomunismo”, definiu-o como aquilo que o grupo dirigente do PCI considerava fundamental: “o ponto alto do desenvolvimento de todas as conquistas democráticas, que devem garantir o cumprimento de todas as liberdades individuais e coletivas, da liberdade religiosa e da liberdade da cultura, da arte e da ciência”. Mas a realidade daquela estratégia era muito mais clara: abrir um espaço no governo ao lado da principal força política da burguesia italiana, a DC, sacrificando sobre aquele altar as lutas operárias e qualquer perspectiva de mudança.
A política de Berlinguer marca o início do fim do PCI

As próprias bases de apoio do compromisso histórico representaram condições destrutivas do mesmo padrão: importantes setores da CGIL (a FLM – Federação dos Trabalhadores Metalúrgicos – era publicamente contrária) começaram a opor-se ao EUR [2] ; o “Movimento do 77” entrou em colisão frontal com essa experiência; mas a extrema-esquerda italiana pós 68 não soube lançar as bases para a construção de um partido autenticamente revolucionário à esquerda do PCI, que deveria construir a força e as condições organizativas para dirigir a radicalização da luta das massas.

Em pouco tempo a experiência do compromisso histórico berlingueriano começou a registrar também a hostilidade dos principais círculos do capitalismo italiano, pois aquele compromisso, se por um lado serviu à DC e à burguesia para enquadrar as lutas sociais e reprimir de maneira seletiva amplos setores da extrema-esquerda, por outro lado ampliou o parasitismo político do grupo dirigente do PCI que a burguesia tentou superar: a expressão da tão clamada “questão moral”. Para o PCI foi a derrota com uma importante perda de votos, mas ao mesmo tempo foi o sucesso para a burguesia: aprofundou o próprio programa antipopular graças a uma DC que se regenerou nos governos craxianos [3].

O PCI nos primeiros anos da década de 1980, dirigido ainda por Enrico Berlinguer, até 11 de junho de 1984, depois da experiência do compromisso histórico, iniciou sua completa assimilação às forças da socialdemocracia europeia. A morte de Enrico Berlinguer causou um psicodrama coletivo em amplos setores da população, e resultou em um consistente sucesso eleitoral nas eleições europeias daquele ano, mas foi um fato episódico, pois a crise era inevitável: nas eleições de 1987 o PCI alcançou 26,6%, abaixo do percentual obtido em 1968.
O período de Ochetto

Em 1988, o PCI conhecia, sob a direção de Achille Occhetto, o início da constituição de uma nova força política. Esse processo, embora fosse acelerado pelos fatos, registrou uma tentativa, ainda que contraditória e nebulosa, de consolidação teórica: decretava uma ruptura aberta com as concepções clássicas do leninismo, a aterrisagem definitiva no centro da socialdemocracia e a plena e declarada aceitação do capitalismo como único horizonte. Mas a fase constituinte do novo partido começa em 1989, depois da “queda do muro de Berlim”: o fim da URSS torna possível ao stalinismo italiano a definitiva ruptura com o comunismo até mesmo nos seus aspectos simbólicos. Esta escolha representou para o último grupo dirigente do stalinismo italiano um impulso libertador: finalmente aquele grupo dirigente não preciava mais se esconder atrás da bandeira vermelha e da foice e o martelo para participar dos governos burgueses.

E assim, em março de 1990, no congresso extraordinário do PCI, com 66% dos votos dos delegados, foi aprovado o fim do partido que daria lugar, no congresso de Rimini em fevereiro de 1991, ao PDS. A história seguinte dos partidos que se originaram no berlinguerismo e em legítima filiação ao togliattismo, o DS e depois o PD, foi caracterizada pelo projeto de construir uma força em condições para apresentar-se para a burguesia como gestora dos negócios dos grupos dominantes do país.

Consolidava-se uma força de governo, como foi o PCI em 1945 e depois nos anos 1970 com o compromisso histórico, mas central e permanente, capaz de representar nacionalmente nos conflitos intracapitalistas os interesses dos principais círculos da burguesia italiana. Nesse sentido, o nascimento do PDS, dos DS e depois do PD não representou uma decomposição do velho PCI, mas o investimento de uma política de origem socialdemocrata em um novo partido burguês liberal, em constante diálogo e relação simbiótica com os grandes grupos industriais e com os banqueiros.

O atual PD de Renzi é a melhor imagem dessa realidade.

A tragédia do stalinismo e a abertura de um novo espaço para o comunismo revolucionário

Toda a história expressada pelo stalinismo internacional e nacional significou o rebaixamento vulgar dos mais elementares princípios do marxismo e do bolchevismo dos nossos dias, o trotskismo: independència de classe, recusa de toda forma de aliança com a burguesia liberal, construção do partido como vanguarda do proletariado revolucionário, perspectiva de construção dos soviets como organismos de poder operário, e embrião do Estado socialista, ou seja, da ditadura do proletariado como transição à construção da sociedade comunista. O stalinismo, ao acontrário, persegue a política das “frentes populares” e da colaboração de classes com os chamados “democratas honestos” e o PCI se construiu, pelos dois compromissos históricos (1945-47 e 1976-78), na constante perspectiva de participação nos governos burgueses, fonte de novos privilégios para a burocracia dirigente.

Esta história, como vimos, foi o prenúncio de grandes derrotas para os trabalhadores e deve ser desmistificada cada vez mais. O legado do berlinguerismo, como o último imponente exemplo político do oportunismo stalinista, hoje é apoiado, não por acaso, por Renzi e Grillo e não pode servir de exemplo para as novas gerações que se aproximam da luta e à necessidade de construir um partido revolucionário que possa conduzir o combate de classe a um êxito consistente. À tragédia política do compromisso histórico e à estratégia berlinguerista, depois de trinta anos, os revolucionários opõem outro legado: o bolchevismo moderno, ou seja, o trotskismo, e a perspectiva de construir um partido de luta, revolucionário, parte de uma Internacional reconstruída, a Quarta Internacional. Esta é a tarefa gigantesca na qual o PdAC está empenhado e para a qual trabalhamos lado a lado com os companheiros das outras seções da LIT-QI presentes nos diversos continentes.

Esta é a nossa perspectiva, baseada em outra tradição histórica, da luta de classes revolucionária. Uma tradição à qual Enrico Berlinguer não pertence.

Tradução: Nívia Leão.



[1] Milícias armadas que combateram os fascistas na Itália.
[2] EUR é um complexo urbanístico em Roma que reúne as principais sedes de ministérios do governo italiano, de grandes corporações privadas e centros universitários.
[3] Termo deriva do governo do ex-socialista Bettino Craxi e utilizado de modo depreciativo.

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