sáb abr 20, 2024
sábado, abril 20, 2024

A solução de "dois estados" está morta

Haidar Eid é professor na Universidade de Al-Aqsa, em Gaza, doutorado na África do Sul em teoria pós-colonial e literatura de resistência e membro fundador do PACBI (Palestinian Campaign for the Academic and Cultural Boycott of Israel/Campanha Palestina para o Boicote Cultural e Acadêmico de Israel). Esta é a segunda parte da entrevista feita pelo médico português e membro do Comitê de Solidariedade com a Palestina, André Traça, durante a sua viagem a Gaza, em Junho deste ano. A primeira parte foi publicada no nosso site, em 21/07/2009:  http://www.litci.org/Portugues/MateriaPT.aspx?MAT_ID=1696

 

Após a última grande agressão israelense em Gaza, como descreve a evolução da situação política na Palestina?

 

Haidar Eid: Creio que as direcções políticas na Palestina não têm estado à altura do povo que representam, que, por sua vez, tem estado muito à sua frente. Gaza 2009 demonstrou que a solução de dois estados está morta, Israel conseguiu com esta agressão matá-la definitivamente. O estabelecimento de um estado palestino independente e soberano nas fronteiras de 1967, como esta solução propõe, é impraticável. Um sistema baseado em bantustões [1] não garante uma paz duradoura, como se provou na África do Sul.

 

Os acordos de Oslo, assinados em 1993 entre Israel e a OLP [Organização para a Libertação da Palestina, de Yasser Arafat], criaram uma situação que não era prevista pelos seus signatários, que é a impossibilidade de se formar um estado palestino independente em 22% da Palestina histórica. Israel foi desenvolvendo uma nova realidade no terreno com a anexação de Jerusalém, declarando-a capital eterna do estado judaico, com a expansão dos colonatos, que fez com que o número de colonos na Cisjordânia chegue atualmente a meio milhão, e, finalmente, com o muro do apartheid que roubou 20 a 30% do território da Cisjordânia.

 

Em todo caso, o estabelecimento desse estado palestino não resolveria a questão dos seis milhões de refugiados palestinos espalhados pelo mundo, assim como não combateria o racismo exercido por Israel contra os 1,3 milhões de palestinos que vivem dentro desse estado e que são tratados como cidadãos de terceira categoria.

 

Aquilo que tem acontecido desde 1993 é uma indústria de paz. 16 anos neste processo – e onde estamos agora? O que fazem as direcções palestinas? Na Cisjordânia, andam de braço dado com os israelenses. Em Gaza, não fazem ideia do que fazem ou para onde vão.

 

Como comenta uma certa tendência do Hamas a aceitar um estado nas fronteiras de 1967?

 

HE: Creio que o Hamas revela sinais de imaturidade política. Tem mostrado imensa flexibilidade. Ao aderir a este processo político e ao aceitar tomar parte nas eleições, aceitou, implicitamente, os acordos de Oslo, mesmo que sempre tenha dito que não os aceitava. E, surpresa das surpresas, mesmo para o próprio Hamas, ganhou as eleições. De certa forma, caiu na armadilha que não esperava e foi obrigado a formar governo.

 

Ao formar governo, supõe-se estar-se à altura da responsabilidade imposta pelos acordos de Oslo. E esta é uma contradição com a qual o Hamas não consegue lidar: é simultaneamente um governo, mas é também fundamentalmente um movimento de resistência, duas características que são irreconciliáveis. Ou se é um movimento de resistência que luta contra a ocupação com um programa político claro, ou se é uma autoridade nacional que se coordena com Israel e com EUA.

 

Se o Hamas se coordena e negocia com Israel, isso representa um suicídio político. Ao mesmo tempo, não pode continuar a resistência armada e ser aceito pela chamada comunidade internacional. E chegamos então ao momento da verdade para o Hamas: ou é um suposto governo ou um movimento de resistência. E, na minha opinião, não existe nem governo nem autoridade palestina; a única autoridade real é a autoridade da ocupação.

 

Como antevê, então, o futuro do Hamas?

 

HE: As pessoas votaram no Hamas por duas razões: primeiro, devido à corrupção da Autoridade Nacional Palestina (ANP), e depois, porque o Hamas era a única força que, custa-me dizê-lo, constituía uma alternativa. Alternativa esta que, muito devido à demissão sucessiva da esquerda palestina, era a única que incluía a resistência como componente fundamental, sendo que a resistência é a única relação natural que pode existir com uma força de ocupação.

 

Devido à pressão da comunidade internacional, dos governos árabes e de um sector da sociedade palestina, o Hamas ficou confuso, politicamente falando. Outro fator de peso foi o processo dos acordos de Oslo, que conseguiu influenciar toda a psique palestina, incluindo a dos movimentos de resistência. O próprio Hamas, ao aderir a este processo político, foi “osloizado”. De qualquer forma, creio que o Hamas será obrigado a escolher a via da resistência.

 

Eu creio que o que mais precisamos neste momento é de um processo de desosloização”. Precisamos de uma mudança de paradigma. Uma mudança que declare a solução de dois estados morta e que comece uma luta pela democracia cívica: “uma pessoa, um voto” num estado único secular e democrático para todos os habitantes da Palestina histórica, que contemple o regresso dos mais de seis milhões de refugiados.

 

 

Artigo publicado no site da Ruptura/FER: http://www.rupturafer.org

 

_______________________________________

NT:

[1] Os bantustões foram pseudo-estados, de base tribal, criados pelo regime do apartheid na África do Sul. Visavam manter os negros fora dos bairros e terras brancas, mas suficientemente perto delas para servirem de fontes de mão-de-obra barata. Mais informações no site Wikipedia.

 

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares