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terça-feira, março 19, 2024

1871-1917: Por que os bolcheviques estudaram a Comuna de Paris para fazer a Revolução de Outubro?

Em 1901, Lenin pediu a Plekhanov (pai do marxismo russo) um artigo sobre a Comuna para o jornal Iskra, na ocasião do trigésimo aniversário da heroica revolução dos operários parisienses. Plekhanov contestou dizendo que não lhe parecia um tema interessante, uma vez que se tratava de “um fato antigo”. Lenin respondeu que, pelo contrário, era um tema de grande atualidade1.

Por: Francesco Ricci

Como veremos neste artigo, a convicção da importância fundamental da Comuna acompanha toda a vida de Lenin, que chegou até a sustentar que a revolução mundial teve dois atos: o Outubro de 1917 era o “segundo ato”, enquanto a Comuna de Paris de 1871 teria sido o “primeiro ato”.

Essa convicção foi compartilhada por outro grande dirigente da Revolução de Outubro, Leon Trotsky, que escreveu: “Sem o estudo (…) da Comuna de Paris, jamais teríamos levado a cabo a Revolução de Outubro (…)”.2

As burguesias francesa e alemã também eram conscientes da importância que a Comuna poderia ter como um exemplo a ser imitado por futuras revoluções. E para evitar qualquer imitação foi que a burguesia francesa, após ter cercado e derrotado a Comuna, continuou por semanas fuzilando e jogando em valas comuns milhares de pessoas e centenas de crianças, inclusive as que não haviam tomado parte ativa na Comuna, mas pelo simples fato de viverem em Paris naqueles dias. E, com as mesmas motivações, a burguesia prussiana, que havia lutado até poucas semanas antes contra a França na guerra franco-prussiana de 1870, ajudou a burguesia francesa a afogar em sangue a Comuna, libertando uma parte dos prisioneiros de guerra para que o governo de Adolphe Thiers pudesse jogá-los contra Paris.

Ao mesmo tempo, a imprensa burguesa do mundo todo inventava lendas caluniosas contra os “communards” [como eram conhecidos os membros da Comuna, ndt], acusando-os de crimes e monstruosidades, e o regime czarista, para evitar o “contágio” da Comuna, proibiu a entrada na Rússia dos exilados da Comuna, fez listas de depuração dos russos que participaram na Comuna, e proibiu todos os livros que falavam da Comuna. Mas essa atividade de censura e perseguição não obteve os resultados esperados: foram dezenas as obras de populistas russos dedicadas à Comuna, entre elas uma de Petr Lavrov, figura destacada do populismo, e outra de um importante romancista revolucionário muito querido de Lenin, Nikolai Tchernichevski 3, que dedicou à Comuna sua obra As luzes do amanhecer.

O movimento populista fertilizou o solo do qual nasceu – na última parte do século XIX, após um processo de cisões e com o crescimento do marxismo – a socialdemocracia russa. Entre as coisas que os comunistas russos herdaram do populismo estava uma grande paixão pelo estudo da Comuna.

Como Lenin estudou a Comuna de 1871

Em suas memórias, vários colaboradores de Lenin afirmaram que era muito frequente que ele citasse este ou aquele episódio da Comuna em suas conversas. E se fizermos uma busca na monumental obra de Lenin encontraremos uma grande quantidade de textos sobre a Comuna. Foram feitas várias antologias das obras de Lenin, em diversas línguas, que incluem textos específicos ou trechos dedicados à Comuna. Mas nenhuma dessas coleções está completa, porque seria necessário incluir a maior parte dos textos do autor que fazem referência constante à Comuna.

Existem textos específicos de Lenin sobre a Comuna: artigos, discursos ou notas para discursos em ocasião de algum aniversário da insurreição de 18 de março de 1871 (limitamo-nos a citar “Em memória da Comuna”, de 1911, ou a importante introdução de 1907 à edição russa das cartas que Marx escreveu ao doutor Kugelmann nos dias da Comuna, ou “A guerra e a socialdemocracia russa”, de 1914)4. Mas as referências a este tema também constituem o esqueleto de quase todos os textos mais importantes de Lenin e particularmente os que serviram para preparar a Revolução de 1917. Considerando que este artigo está dedicado a reconstruir a ligação entre a Revolução de Paris de 1871 e a Revolução Russa de 1917, utilizamos os textos de 1917 e do período seguinte.

Encontramos citações da Comuna nas “Cartas de Longe”, que Lenin escreve da Suíça ao Comitê Central dos bolcheviques, em março de 1917, para tentar modificar a linha equivocada que a direção russa do partido estava tomando. Dessas cartas, apenas a primeira foi publicada (com cortes) no Pravda dirigido por Kamenev e Stalin; as outras foram publicadas somente em 1924 e, em versão integral, em 1949. A terceira dessas cinco cartas está centrada no exemplo da Comuna e sobre a análise que Marx e Engels fizeram dela, que é totalmente diferente da análise feita pelos oportunistas. Marx e Engels se centraram no fato de que a Comuna tinha “quebrado o Estado” burguês para substituir a ditadura da burguesia pela ditadura do proletariado. A conclusão de Lenin é que “Seguindo o caminho traçado pela experiência da Comuna de Paris de 1871 (…) o proletariado deve organizar e armar todos os elementos pobres e explorados da população, a fim de que eles mesmos tomem diretamente em suas mãos os organismos do poder do Estado e formem eles mesmos as instituições desse poder”.5

O tema da Comuna retorna no artigo “Sobre a dualidade de poderes”6, publicado no Pravda em 9 de abril de 1917, nas “Cartas sobre tática” (21-26 de abril de 1917)7 e, principalmente, a Comuna é a chave de leitura das famosas “Teses de Abril” (1917), com as quais Lenin “rearma” o partido propondo uma mudança completa na política equivocada da direção bolchevique antes de sua chegada à Estação Finlândia. Nessas breves teses, a Comuna é o ponto de referência: na tese 5, Lenin cita a Comuna para enfrentar o tema da dissolução das forças repressivas do Estado burguês (polícia e exército) e para indicar a necessidade de que os funcionários públicos recebam um salário igual àquele de um operário; na tese 7, retomando as críticas que Marx tinha feito sobre os erros da Comuna, Lenin assinala a necessidade de que se proceda à “fusão imediata de todos os bancos do país em um único banco nacional na Rússia, sob o controle dos soviets” (os communards hesitaram em realizar esta tarefa). Na tese 9, ele indica o objetivo geral da revolução: a construção de um Estado novo, um Estado-Comuna, “isto é, um Estado do qual a Comuna de Paris forneceu o primeiro modelo8.

Na base de grande parte dos principais textos de Lenin de 1917 está o “Caderno Azul” (intitulado O marxismo e o Estado)9, um resumo cheio de citações de Marx e Engels sobre o Estado. Esse caderno, que Lenin começa a compilar ainda na Suíça, é a base de sua obra mais importante: O Estado e a Revolução. No centro de ambos estão os textos sobre a Comuna. Particularmente, todo o terceiro capítulo de O Estado e a Revolução é dedicado à Comuna e àquilo que Lenin, como Marx e Engels, considera seu principal ensinamento: “A revolução não deve consistir em que a nova classe mande e governe por meio da velha máquina do Estado, mas em que destrua esta máquina e mande e governe por meio de outra nova: Kautsky dissimula (…) essa ideia fundamental do marxismo.10

Lenin cita Kautsky porque é à sua caneta que devemos as maiores revisões do marxismo feitas em nome de uma suposta ortodoxia, mas podemos acrescentar que todo o reformismo posterior “fez desaparecer” a grande lição da Comuna. O exemplo mais recente é o apoio dado por toda a esquerda reformista e centrista do mundo ao governo do Syriza na Grécia, fazendo desaparecer a diferença fundamental que há entre chegar ao governo no capitalismo, em aliança com a burguesia, e chegar ao poder por uma revolução como foi aquela dos operários parisienses.

O Estado e a Revolução foi publicado somente após a tomada do poder em Outubro de 1917, mas sua elaboração foi anterior e os temas que compõem o livro foram a base de toda a ação de Lenin e dos bolcheviques naquele ano crucial.

Como Trotsky escreve em sua História da Revolução Russa: “Durante os primeiros meses de sua vida clandestina, Lenin escreveu um livro, O Estado e a Revolução, cujo material principal foi reunido no exílio (…) para ele, a teoria era de fato um guia para a ação. (…) Sua tarefa, diz, era restabelecer a verdadeira ‘doutrina marxista sobre o Estado’. Com sua meticulosa seleção de citações (…), o livro pode parecer pedante – aos verdadeiros pedantes, incapazes de sentir sob a análise dos textos a poderosa pulsação do pensamento e da vontade. (…) Mas este trabalho sobre o Estado tem sua imensa importância, acima de tudo, pelo fato de ser a introdução científica da maior revolução da História. Este ‘comentarista’ de Marx estava preparando seu partido para a conquista revolucionária de um sexto da superfície habitável da Terra”.11

Os mesmos temas, e a referência constante à Comuna, tornam-se também a principal polêmica teórica escrita por Lenin após a revolução para ajustar contas com aquele que durante um tempo foi seu mestre: Karl Kautsky. Trata-se de A Revolução proletária e o renegado Kautsky12. Mas a este livro e ao “anti-Kautsky”, escrito pouco depois por Trotsky, Terrorismo e comunismo13, voltaremos em um próximo artigo.

Concluímos esta breve resenha dos textos de Lenin sobre a Comuna recordando dois textos posteriores à revolução: o “Informe sobre a democracia burguesa”14, preparado por Lenin para o Primeiro Congresso da Terceira Internacional (1919), e o “Projeto de programa do PCR”, para o VIII Congresso dos Bolcheviques (1919)15. Ambos os textos são importantes, nos quais se desenvolve a teoria marxista do Estado, e estão cheios de referências à Comuna de Paris e demonstram que, para Lenin, a Comuna foi não só uma referência para armar os revolucionários antes da revolução, mas também para o período seguinte à conquista do poder: a construção do Estado operário, a ditadura do proletariado, na qual – sobre o exemplo da Comuna – as novas instituições soviéticas não estivessem baseadas no modelo do parlamento burguês, mas sim que reunissem em um único poder operário os três poderes formalmente separados pela burguesia (os poderes executivo, legislativo e judiciário).

Os bolcheviques foram capazes de chegar a essas conclusões estudando a experiência dos operários parisienses, os quais, no entanto, não tendo experiências anteriores sobre as quais se apoiar, tiveram que aprender sobre a necessidade da independência de classe com sua experiência direta, pagando um alto preço em sangue.

Os operários parisienses contribuíram para a construção da Primeira República (com a Grande Revolução de 1789-1794), mas foram recompensados pela burguesia com a Lei Le Chapelier, que proibia as organizações operárias. Os operários parisienses tiveram que combater, em fevereiro de 1848, pela Segunda República, mas a burguesia os recompensou, em junho daquele ano, jogando contra eles o lúmpem proletariado, destruindo-os aos milhares. E, ainda, em 1870, após terem lutado para Napoleão III em uma guerra que não era deles, os operários deixaram o poder à burguesia que tinha edificado a Terceira República, cujo primeiro ato foi fazer com que eles pagassem pelas dívidas da guerra com a Prússia. Foi como resultado dessas experiências que os operários compreenderam a necessidade de não acreditar mais nas repúblicas burguesas e, com a insurreição de 18 de março de 1871, içaram a bandeira vermelha sobre o Hotel de Ville e fundaram a primeira república baseada no poder armado dos operários.

Mas a Comuna não foi somente uma escola para os revolucionários de todo o mundo: também constituiu fortemente, como Lenin escreveu, “em todos os lugares um impulso à propaganda socialista revolucionária16 e transformou Marx em uma celebridade (a imprensa burguesa o retratou como o inspirador da Comuna). Efetivamente, foi somente após a Comuna que as obras de Marx começaram a ter uma grande difusão. Mas, acima de tudo, a Comuna, nas palavras de Engels, permitiu “quebrar essa colaboração ingênua de todas as frações”, isto é, superar a Primeira Internacional e deixar espaço para uma nova Internacional “claramente comunista [que] proclamará os princípios que serão os nossos” (isto é, os princípios do marxismo).17

A “revisão” de Trotsky sobre a Comuna

Também para o outro grande dirigente da Revolução Russa a referência à Comuna foi um elemento constante durante toda a vida. Já em janeiro de 1906, no cárcere depois da Revolução Russa de 1905, Trotsky escreve um texto pouco conhecido, “35 anos depois: 1871-1906”, que é bem mais que uma celebração do aniversário da Comuna. Como sabemos, foi naqueles anos que Trotsky elaborou a teoria da revolução permanente, e a Comuna é estudada por ele como um exemplo da “lei do desenvolvimento desigual e combinado” e da negação de cada análise determinista vulgar que, “simplificando e distorcendo” – citamos Trotsky – a concepção materialista-dialética de Marx, vê o socialismo como “automaticamente dependente” do grau de desenvolvimento econômico de um país. E conclui: “Se a Comuna entrou em colapso, não foi devido ao desenvolvimento insuficiente das forças produtivas, e sim como resultado de uma série de fatores de natureza política: o cerco de Paris e seu isolamento das províncias, as circunstâncias internacionais extremamente desfavoráveis, os erros dos ‘communards’ etc.”.18

Assim, para Lenin e também para Trotsky, não é possível indicar todas as referências, diretas ou indiretas, à Comuna, porque ela é para ambos a estrela guia para olhar e achar a orientação em cada momento. Citamos apenas alguns dos textos mais importantes nos quais o tema da Comuna é aprofundado.

Justamente durante os acontecimentos de 1917, em março, Trotsky escreve “A Comuna de Paris”, um artigo para Novy Mir, um semanário em russo publicado em Nova York. Fazendo um paralelo entre 1871 e o desenvolvimento revolucionário na Rússia, conclui: “A bandeira da Comuna é a bandeira da República mundial do trabalho”.19

Em Terrorismo e Comunismo (sobre o qual, como já dissemos, falaremos em um próximo artigo dedicado aos dois “anti-Kautsky”, o de Lenin e o de Trotsky), toda a polêmica é feita propondo uma confrontação entre a Comuna de 1871 e a Revolução Russa de 1917, e particularmente os capítulos V e VI desse texto são integralmente dedicados à Comuna para demonstrar – contra a interpretação de Kautsky – que o objetivo da Comuna não foi a democracia formal, mas sim a democracia real, de classe.

Mas é no texto “As lições da Comuna”, escrito em 1921 como prefácio a um livro de Tales, que o estudo se aprofunda e Trotsky, tal como já tinham feito Marx, Engels e Lenin, não se limita a enaltecer a Comuna, mas a submete a uma crítica intensa, assinalando muitos dos seus erros. Fazendo uma comparação com a Revolução Russa e com o papel desenvolvido pelos mencheviques e pelos socialistas-revolucionários na constituição de governos burgueses após a Revolução de Fevereiro, escreve: “A Comuna chegou demasiado tarde. Teve todas as possibilidades para tomar o poder em 4 de setembro, o que teria permitido ao proletariado de Paris colocar-se à frente de todos os trabalhadores do país em sua luta contra as forças do passado, tanto contra Bismarck como contra Thiers. Mas o poder caiu nas mãos dos charlatões democráticos, os deputados de Paris”.20

E ainda, na esplêndida polêmica A moral deles e a nossa (e na posterior resposta a Victor Serge, “Moralistas e sicofantas contra o marxismo”, escrita quando Serge retorna às suas posições anárquicas originárias e critica “o amoralismo” dos bolcheviques)21, Trotsky reivindica a Comuna para demonstrar a legitimidade (do ponto de vista da moral revolucionária) do emprego do “terror vermelho” por parte de um Estado operário contra os inimigos que tentam derrubá-lo. Há aqui a referência ao “decreto sobre os reféns”, ao fuzilamento de alguns prisioneiros e a outras medidas empregadas pelo juveníssimo (25 anos) prefeito da Comuna, Raoul Rigault.

Derrubando o senso comum de “moralistas” como Serge, Trotsky lembra que um dos erros que Engels imputou à Comuna não foi o emprego do terror, mas, pelo contrário, a “excessiva cordialidade” com seus inimigos: erro que os bolcheviques tentaram não repetir.

Também na magistral A História da Revolução Russa, a referência à Comuna e a comparação com Outubro – para indicar semelhanças e diferenças – é frequente. Trotsky lembra a polêmica ao final de agosto de 1917 de Lenin contra o dirigente bolchevique Zinoviev (que, como se sabe, era contra organizar a insurreição naquelas semanas). Zinoviev, em um artigo publicado no Pravda em 30 de agosto, intitulado “O que não precisamos fazer”, indica a Comuna como exemplo negativo. Lenin responde, indiretamente, com um artigo publicado em 3 de setembro no qual afirma que quem se refere à Comuna apresentando-a como o exemplo desastroso de uma insurreição prematura e pretende (como Zinoviev) dizer que seria prematura a insurreição na Rússia faz uma “alusão à Comuna (…) muito superficial e até mesmo tola. Porque, antes de tudo, algo os bolcheviques aprenderam de1871: não deixariam de apoderar-se dos bancos, não se absteriam de marchar contra Versalhes; se tivessem agido assim, então a própria Comuna poderia ter vencido”.22

Mas o estudo de Trotsky vai mais longe, e – como Nahuel Moreno assinalou claramente em uma polêmica com Ernest Mandel – ele chegou “a fazer uma revisão completa da concepção clássica da Comuna”.

Vamos ler o que escreve Moreno: “Na década de 1930, polemizando com a tendência dos trotskistas franceses que editava o jornal La Commune, ele negou pela primeira vez a Comuna [isto é, a Comuna composta pelos noventa representantes eleitos nas eleições parisienses realizadas após a insurreição, ndt] como ditadura do proletariado (…). Trotsky assinala que a ditadura do proletariado estava em outra organização, na Guarda Nacional, no órgão de luta (…). A ditadura operária foi a organização daqueles que lutavam e não a de todos os trabalhadores de Paris23 [que tinham eleito a Comuna com o “sufrágio universal”, já que, de fato, nessas eleições participaram quase somente trabalhadores, dado que os burgueses tinham fugido de Paris, ndt].

Para Trotsky – afirma Moreno -, o equivalente embrionário em 1871 do soviet de 1917 foi a Guarda Nacional24, não a assembleia eletiva municipal denominada Comuna, cuja eleição também foi considerada por Marx “uma perda de tempo” no momento em que era necessário, pelo contrário, atacar o governo burguês que se protegeu em Versalhes. Trotsky volta ao tema em um texto de 1933, “A natureza de classe do Estado soviético”, e escreve: “Se Marx e Engels consideraram a Comuna de Paris como ‘ditadura do proletariado’ foi somente pelas possibilidades que ela implicava. Mas, em si mesma, a Comuna não era ainda a ditadura do proletariado”.25

Porém, por que a Comuna foi uma ditadura do proletariado apenas em potencial? Porque (e este é o sentido do raciocínio de Trotsky retomado por Moreno) também o “soviet” era apenas embrionário e faltava um partido marxista revolucionário que o dirigisse.

A principal diferença entre 1871 e 1917: o partido

É dito habitualmente que a diferença principal entre a Comuna de Paris e a Revolução Russa é que em 1871 não havia o partido que tornasse possível a vitória como em 1917.

Essa afirmação é verdadeira, embora não seja verdade, diferentemente de quanto Lenin e Trotsky acreditaram nisso baseando-se nos conhecimentos historiográficos de seu tempo, que aquele partido faltasse completamente. Como demonstramos em um texto26 mais profundo sobre a Comuna (ao qual nos permitimos fazer referência somente porque não existem outros estudos mais recentes sobre este tema), na verdade existiu na Comuna um embrião de partido revolucionário: a Delegação dos Vinte Arrondissements (ou seja, os bairros em que foi e é dividida Paris).

Frequentemente, seguindo uma lenda inventada pelo stalinismo, acredita-se que a concepção de “partido de vanguarda” é uma invenção de Lenin, que na verdade só aperfeiçoou e efetivou um conceito que já estava bem presente na obra e na ação de Marx.

Marx e Engels construíram – ou tentaram construir – partidos programaticamente delimitados durante toda sua vida de militantes políticos, do Comitê de Bruxelas (já em 1846) à Liga dos Comunistas, da Primeira Internacional à socialdemocracia alemã, a Segunda Internacional (esta última apenas Engels, já que Marx tinha morrido antes). Por isso, Marx era consciente de que a primeira necessidade dos operários de Paris, diante da revolução que se avizinhava, era consolidar seu partido independente da burguesia. No Segundo Manifesto que escreve para a Internacional (9 de setembro de1870), aconselha: “Que [os operários franceses, ndr] aproveitem serena e determinadamente as oportunidades que lhes brinda a liberdade republicana para trabalhar na organização de sua própria classe”.27

Infelizmente, como se sabe, não foram os operários que escolheram a hora de intervir, mas sim seus adversários burgueses, que desencadearam um ataque para tentar desarmar a Guarda Nacional. Foi em resposta a esse ataque que os operários se revoltaram e tomaram o poder em 18 de março de 1871.

Lenin e Trotsky, em suas análises sobre a Comuna, retomam esse tema, corretamente. Mas ambos afirmam que na Comuna faltou completamente uma direção. E nisto se equivocam.

Lenin afirma com insistência em todos os textos que dedica à Comuna que faltou completamente uma direção, inclusive recordando que a seção da Internacional na França foi muito ativa a partir de 1864. Ele afirma categoricamente: “A Comuna surgiu de forma espontânea, ninguém a preparou de um modo consciente e sistemático (…). Não havia uma organização séria do proletariado (…)”.28 (grifos nossos)

De forma ainda mais clara, no informe de 8 de março de 1918 ao VII Congresso bolchevique, ele diz: “Os criadores da Comuna não a compreendiam, criavam-na com a genial intuição das massas despertas, e nem uma única fração dos socialistas franceses tinha noção do que fazia”.29

Trotsky tem a mesma opinião e, efetivamente, escreve: “O proletariado parisiense não tinha nem um partido nem líderes aos quais tivesse estado estreitamente vinculado por lutas anteriores”.30

Não se pode esperar uma análise mais aprofundada de Lenin e de Trotsky porque eles se basearam nos conhecimentos que estavam disponíveis na época em que escreveram: Lenin, em particular, sobre o livro de Lissagaray31, uma boa crônica, mas politicamente muito superficial, escrita por um jornalista e militante revolucionário não marxista que participou da Comuna; e Trotsky, sobre o livro de Tales32 que, por sua vez, baseava-se no de Lissagaray.

Somente com alguns estudos feitos de 1960 em diante se comprovou que: 1) os membros da Internacional não eram minoria; na realidade, estiveram em maioria na Comuna eleita. E, por outro lado, é verdade que estiveram em minoria as posições majoritárias da Internacional, isto é, as de Marx. 2) Houve pouca espontaneidade na Comuna: era, de fato, um partido em construção, a Delegação dos Vinte Arrondissements, nascida em setembro de 1870, dirigida pelas figuras mais próximas a Marx (como Varlin) e (ao contrário do que escreve Lissagaray) hegemonizada pelos dirigentes da AIT [Associação Internacional dos Trabalhadores, isto é, a Primeira Internacional] (não por acaso se reuniam na Rua de Corderie, onde estava a sede da AIT), consolidada em um processo de cisão dos membros mais moderados.

Trata-se de um partido verdadeiro e próprio, com congressos, organismos, cotas de afiliação, registro só para militantes, um Estatuto (artigo 1: “A Delegação tem como objetivo centralizar as forças democrático-socialistas de Paris”.), um programa para derrotar revolucionariamente a democracia burguesa (a organização “luta para obter por todos os meios possíveis a eliminação dos privilégios da burguesia, seu desaparecimento como casta dominante e pela vitória política dos trabalhadores. Em suma, a igualdade social”), um vínculo explícito (a partir do Estatuto) com a AIT.

Acima de tudo (e aqui está o erro de Lissagaray, isto é, da fonte de Lenin e de Trotsky), sabemos hoje (tendo encontrado as atas) que a Delegação não se dissolveu em fevereiro, mas continuou a se reunir até a queda de Paris e cumpriu um papel de destaque durante os dois meses da Comuna.33

O que queremos dizer? Que Lenin e Trotsky tiveram razão no essencial (a Comuna foi derrotada porque não contou com aquele partido que os comunistas russos conseguiram construir); mas que subvalorizaram, por falta de informação, o grau de organização e construção do partido revolucionário que já tinha sido alcançado pelos operários parisienses. Sem aquele embrião de partido, provavelmente também não teria existido o embrião de soviet e aquele embrião de ditadura do proletariado de que falamos. Se no lugar de um embrião tivesse existido um partido marxista desenvolvido, talvez a Comuna não tivesse sido derrotada.

Um trabalho por terminar

Muitas vezes, mesmo em livros e artigos que expressam posições corretas, apresenta-se uma visão da Comuna como “uma derrota”. Certamente, em termos imediatos e do ponto de vista nacional, a Comuna foi uma derrota. Mas, do ponto de vista geral e do movimento operário internacional, foi e ficou como uma das maiores vitórias revolucionárias de todos os tempos. Permitiu ao marxismo vencer sua batalha na Primeira Internacional contra os anarquistas e conhecer uma nova propagação mundial, com a construção de partidos em todo o mundo. Também o movimento revolucionário russo é filho da Comuna. A Revolução Russa de 1917 tem uma profunda dívida com os operários parisienses de 1871, da qual Lenin e Trotsky eram conscientes. Marx escreveu nas linhas finais de A Guerra civil na França: “A Paris dos operários, com sua Comuna, será eternamente exaltada como o arauto glorioso de uma nova sociedade. (…) Quanto aos seus exterminadores, a história já os cravou para sempre num pelourinho, do qual todas as preces de seus clérigos não conseguirão redimi-los”.34

A profecia de Marx realizou-se em Outubro de 1917, quando os operários russos, conduzidos pelos bolcheviques, iniciaram a construção daquela nova sociedade que os operários franceses tinham anunciado. Aos operários revolucionários de todo o mundo cabe hoje a tarefa de concluir esse trabalho.

Notas:

(1) Citado por Georges Haupt, A Internacional socialista da Comuna a Lenin (pp. 61-62 da edição italiana, Einaudi,1978).

(2) Leon Trotsky, Lições de Outubro (1924). www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/permanente/leccionesdeoctubre.htm#_ftn1

(3) Nikolaj Gavrilovi Černyševskij (1828-1889), é autor do romance Que fazer? escrito no cárcere, em 1863, onde foi preso por suas posições anticzaristas. Lenin retoma o título desta obra para seu célebre livro de 1902 sobre o tema do partido.

(4) Os textos de Lenin são citados das Obras completas em espanhol (Editorial Progreso, 1985): “À memória da Comuna” (1911) (livro 20, p. 229 e ss.); “Prefácio à tradução ao russo das cartas de Marx a Kugelmann” (1907) (livro 14, p. 398 e ss.); “A guerra e a socialdemocracia da Rússia” (1914) (livro 26, p. 13 e ss.).

(5) V.I. Lenin, “Cartas de longe” (1917) (Obras completas, livro 31, p. 11 e ss.).

(6) V.I. Lenin, “A dualidade de poderes” (1917) (Obras completas, livro 31, p. 153 e ss.).

(7) V.I. Lenin, “Cartas sobre tática” (1917) (Obras completas, livro 31, p. 138 e ss.).

(8) V.I. Lenin, “Teses de Abril” (1917) (Obras completas, livro 31, p. 157 e ss.).

(9) V.I. Lenin, “O marxismo e o Estado” (1917), conhecido também como “Caderno Azul”, escrito entre 1916 e os primeiros meses de 1917 (edição italiana: Editori Riuniti, 1976).

(10) V.I. Lenin, O Estado e a Revolução (1918) (Obras completas, livro 33, p. 1 e ss.).

(11) Leon Trotsky, A História da Revolução Russa (1930) (ed. Zero, 1973, trad. de A. Nin, tomo 2, p. 390).

(12) V.I. Lenin, A revolução proletária e o renegado Kautsky (1918) (Obras completas, livro 37, p. 243 e ss.).

(13) Leon Trotsky, Terrorismo e comunismo (1921) (Edição Il Comunista em espanhol, 2015).

(14) V.I. Lenin, “Teses e informe sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado” (1919) (Obras completas, livro 37, p. 509 e ss.).

(15) V.I. Lenin, “Projeto de programa do PCR (b)”, VIII Congresso (1919) (Obras completas, livro 38, p. 89 e ss.).

(16) V.I. Lenin, “À memória da Comuna” (1911) (Obras completas, livro 20, p. 229 e ss.).

(17) Friedrich Engels, Carta a Sorge, 12 de setembro de 1874 (Marx-Engels, Obras Escolhidas).

(18) Leon Trotsky, “35 anos depois: 1871-1906” (em Leon Trotsky on Paris Commune, Pathfinder Press, 1970, p. 10 e ss.), nossa tradução do inglês ao italiano.

(19) Leon Trotsky, “A Comuna de Paris”, março de 1917 (em Leon Trotsky on Paris Commune, Pathfinder Press, 1970, p. 26 e ss.), nossa tradução do inglês ao italiano.

(20) Leon Trotsky, “As lições da Comuna” (1921). www.marxists.org/espanol/trotsky/1920s/1921_0204_1.htm

(21) Leon Trotsky, A moral deles e a nossa (1938-1939) (Editorial Fontamara, 1978).

(22) Leon Trotsky, A História da Revolução Russa (1930) (ed. Zero, 1973, trad. de A. Nin, tomo 2, p. 406).

(23) Nahuel Moreno, A ditadura revolucionária do proletariado (1979) (Marxismo Vivo, 2010, p. 117-118). O texto de Trotsky citado por Moreno é publicado em The crise of the french section. 1935-1936 (Pathfinder Press, 1977).

(24) A Guarda Nacional foi uma instituição da Grande Revolução de 1789-1794. Mas, se até 1848 foi um instrumento nas mãos da burguesia, a partir da instauração da Terceira República, em setembro de 1870, foi reconstituída como milícia composta por operários: trezentos mil trabalhadores da produção desenvolveram treinamento militar regular recebendo um salário. A estrutura da Guarda Nacional adiantou a estrutura que assumiriam mais tarde os soviets a partir da revolução russa de 1905.

(25) Leon Trotsky, “A natureza de classe do Estado Soviético” (1933) (Escritos, tomo 3, p. 283). Para ser preciso, foi Engels quem falou (em um excesso de polêmica contra posições oportunistas) da Comuna como uma “ditadura do proletariado” quando, no prefácio de 1891 à Guerra Civil na França de Marx, escreve: “Olhem a Comuna de Paris. Esta foi a ditadura do proletariado”. Em Marx não há nenhuma referência tão categórica: Marx fala de uma “tendência” da Comuna e a descreve como uma espécie de “embrião” da ditadura do proletariado (a expressão embrião é nossa e ao usá-la, na ausência de uma melhor, apontamos sua escassa cientificidade).

(26) Francesco Ricci, “A Comuna de Paris (1871): precursora da Comuna de Petrogrado (1917)”, Marxismo Vivo, 16, 2007.

(27) Karl Marx, “Segundo Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a Guerra Franco-Prusiana”. www.marxists.org/espanol/m-e/1870s/gcfran/manif2.htm

(28) V.I. Lenin, “À memória da Comuna” (1911) (Obras completas, livro 20, p. 229 e ss.).

(29) V.I. Lenin, “Informe sobre a revisão do programa e a mudança de nome do partido” (1918) (Obras completas, livro 36, p. 47 e ss.).

(30) Leon Trotsky, “As lições da Comuna” (1921) www.marxists.org/espanol/trotsky/1920s/1921_0204_1.htm

(31) Prosper Olivier Lissagaray, História da Comuna de Paris (1876) (Editorial Estela, 1971).

(32) C. Tales, A Comuna de 1871 (1921) (Ed. Os amigos de Spartacus, 1998). Tales baseia-se quase completamente no livro de Lissagaray, v. nota 31, e acrescenta aos erros deste autor outra análise equivocada: fala de “derrota da Primeira Internacional após a Comuna”; enfatiza o peso dos proudhonianos; dedica somente meia página (cheia de erros) ao embrião de partido de que falamos, isto é, a Delegação dos Vinte Arrondissements.

(33) Para aprofundar o tema é fundamental um estudo feito na França em 1960: Jean Dautry e Lucien Scheler, Le Comité Central Républicain des vingt arrondissements de Paris, Editions Sociais. Dautry também é autor com Bruhat e Tersen (todos de orientação stalinista, mas profundos conhecedores do tema) do mais documentado estudo sobre a Comuna: El Commune de 1871, Editions Sociais, 1970.

(34) Karl Marx, A Guerra Civil na França. www.marxists.org/espanol/m-e/1870s/gcfran/guer.htm

Tradução ao espanhol: Natalia Estrada

Tradução ao português: Rosangela Botelho

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