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terça-feira, março 19, 2024

Ser trotskista no século XXI


Em 1985, Nahuel Moreno escreveu um pequeno texto intitulado “Ser trotskista hoje”. Nele, o dirigente trotskista argentino reivindicava aquilo que acreditava ser o fundamental do legado político, teórico e programático que Leon Trotski deixou para o marxismo, a saber: o caráter internacional da revolução socialista, a luta contra a burocratização dos sindicatos e dos antigos Estados operários e a batalha pela construção de um partido mundial da revolução, a IV Internacional.

Por Henrique Canary

Em si, o texto de Moreno é inquestionável e permanece atual. No entanto, hoje, no início do século 21, quando nos aproximamos do centenário da Revolução Russa, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, 23 anos depois do fim da União Soviética, quando não existe mais nenhum Estado operário no mundo, quando a ideia do socialismo se encontra jogada na lama pelos crimes do stalinismo e continua sendo identificada com caricaturas bizarras e vergonhosas como a Coreia do Norte ou com as sombras do que um dia foram Estados operários, como Cuba e China, o legado de Trotski precisa ser revisitado.


Faz sentido ser trotskista? Em que medida o pensamento de Trotski permanece atual para aqueles que desejam transformar o mundo? Até onde as ideias de Trotski respondem aos anseios mais sinceros das novas gerações de lutadores sociais que rejeitam os velhos métodos burocráticos dos partidos tradicionais, inclusive os de esquerda? A teoria-programa trotskista da revolução permanente não terá sido superada pelas elaborações de algum dos novos pensadores marxistas da segunda metade do século 20, ou mesmo do século 21, ou por uma combinação de distintas ideias de distintos autores? Um rápido percurso pelo que consideramos ser o pensamento de Trotski deve fornecer os elementos fundamentais para que cada um possa fazer seu próprio julgamento.
 
Marxismo e trotskismo no século 20 

Excluindo-se Lênin (cuja contribuição ao marxismo excede qualquer parâmetro de comparação com qualquer outro autor) e o próprio Trotski (objeto específico de nossa análise), podemos afirmar que o marxismo foi profundamente enriquecido ao longo do século 20. Importantes aspectos do pensamento de Marx foram aperfeiçoados ou atualizados, algumas lacunas em suas elaborações foram preenchidas, perguntas que o próprio Marx não se colocou foram levantadas. Desse gigantesco e frutífero esforço participaram pensadores como György Lukács, Antônio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Louis Althusser e muitos outros, para citar apenas aqueles que fizeram contribuições globais ao sistema de Marx.

Independente de concordarmos ou não com tais elaborações, é preciso reconhecer que estes homens e mulheres são a prova definitiva de que o socialismo científico é uma obra coletiva, em eterna construção, que não está nem jamais estará acabada, nem mesmo nas páginas mais brilhantes de seus fundadores.
Ao analisar o lugar de Trotski no marxismo do século 20, não basta apelar ao fato de que o dirigente da Revolução de Outubro uniu com maestria teoria e prática ao longo de toda sua vida. Outros também o fizeram, e merecem a mesma honra. O gigantismo de Trotski em comparação com todos os outros pensadores e práticos marxistas é definido pelo fato de que ele, e somente ele, conseguiu decifrar o enigma central do século passado, o fato primordial que determinou todos os outros eventos a partir de 1917 até os dias de hoje: a burocratização, degeneração e posterior extinção do primeiro Estado operário da história.

Neste terreno, Trotski possuiu sobre Lênin a vantagem de ter vivido mais. Lênin, que se afastou definitivamente da vida política no dia 6 de março de 1923, quando sofreu seu terceiro derrame, não viu o fenômeno da burocratização a não ser em seus inícios, e não teve tempo suficiente para fazer sobre ele uma análise mais meticulosa. Trotski, por outro lado, armado com a teoria da revolução permanente e tendo sido protagonista na luta contra a burocracia stalinista durante quase toda a década de 1920, pôde produzir uma explicação global sobre o fenômeno.

Não era uma tarefa fácil. Como o próprio Trotski costumava dizer, os bolcheviques nunca acreditaram na possibilidade de degeneração burocrática da URSS simplesmente porque seu profundo internacionalismo os induzia à conclusão de que, caso a revolução socialista europeia não triunfasse, o destino inexorável da URSS seria a invasão por alguma potência imperialista estrangeira, mas jamais a degeneração. Ou seja, a sobrevivência de uma URSS isolada, ainda que degenerada, não era sequer uma hipótese em 1917. Tal era o ineditismo do desafio teórico colocado perante o marxismo.

Mas Trotski não se limitou a analisar a degeneração do primeiro Estado operário, explicando suas verdadeiras e profundas bases econômicas, sociais e políticas. Ele fez sobre este fenômeno um duplo prognóstico: ou bem a classe operária soviética retomava o controle efetivo do aparelho de Estado por meio de uma revolução política contra a burocracia stalinista, ou bem o capitalismo seria restaurado pelas mãos da própria burocracia.

Quando foi elaborado, em 1936, tal prognóstico foi recebido com ironia e desprezo pela maioria dos que se consideravam marxistas. A economia da URSS crescia a taxas inacreditavelmente altas e o “socialismo em um só país” parecia ter triunfado de maneira definitiva. Quase 50 anos depois, em meados dos anos 1980, a burocracia soviética restaurou o capitalismo na URSS por meio de uma política de Estado denominada Perestroika, dando então razão a Trotski.

Se hoje o imperialismo utiliza o fim da União Soviética como motor de sua campanha contra o socialismo, é preciso reconhecer que, durante quase 50 anos, os trotskistas, orientados por Trotski, alertaram os trabalhadores sobre esse fim inevitável, caso não triunfasse no antigo império dos czares uma revolução política anti-burocrática.

É verdade que a crítica marxista à URSS não é um privilégio de Trotski ou do trotskismo. Muitos outros autores sérios levantaram hipóteses e prognósticos que a seu tempo foram objeto de justificada atenção. No entanto, como diz a segunda tese sobre Feuerbach: “É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento”. Ou seja, a correção (verdade) de uma teoria ou conceito não é dada por sua coerência interna.

Este é o critério da lógica formal, não da lógica dialética, da lógica do concreto. Assim, por mais elegantes que tenham sido, a seu tempo, as explicações produzidas por outros marxistas sobre a URSS (“capitalismo de Estado”, “Estado burocrático” etc.), nenhuma delas permitiu uma compreensão total do fenômeno, desde sua origem, passando por sua evolução até seu definhamento e morte. Somente o conceito de Estado operário degenerado – esta idéia pouco atrativa, de difícil digestão pelo senso comum – pôde fazê-lo.
 
O século 21: a atualização do programa marxista 

Mas o século 20 ficou para trás; o fim da URSS e a restauração do capitalismo em absolutamente todos os antigos Estados operários são fatos consolidados na realidade, pelo menos na humilde opinião da corrente à qual pertencemos, a Liga Internacional dos Trabalhadores.

Além disso, o mundo se tornou mais complexo: novas questões políticas, econômicas e sociais surgiram – outras perderam importância; velhos aparatos contrarrevolucionários e reformistas desapareceram – novos nasceram; antigas ilusões foram perdidas – muitas outras ocuparam o seu lugar. Diante de tantas e tão profundas transformações, seria loucura e uma prova de extrema cegueira política afirmar que o programa revolucionário do século 21 é idêntico ao do século 20. Marx, Engels, Lênin e o próprio Trotski atualizaram o programa do socialismo científico inúmeras vezes, sempre que a realidade o exigiu.

Para eles, o programa revolucionário não era uma bíblia repleta de escrituras sagradas, mas uma fotografia provisória da realidade, um guia para a ação. À medida que mudava a realidade, deveria mudar também o programa. Atualizar o programa marxista em base à nova realidade aberta com o colapso dos Estados operários e a falência do aparato mundial do stalinismo – tal é o desafio que nos coloca o novo século.

Mas enganam-se aqueles que pensam que o novo século, apenas porque assim se chama, exige algum tipo de “novo socialismo”, “novas estratégias” ou “novos sujeitos”. Em verdade, as elaborações teóricas e o programa de Trotski para o século 20 são a única pedra sobre a qual pode ser construído um programa socialista para o século 21. Enquanto a maioria esmagadora da esquerda conclui do fracasso da URSS a impossibilidade do próprio socialismo, o programa trotskista aponta exatamente no sentido oposto: o que fracassou com a URSS foi a estratégia da coexistência pacífica com o imperialismo; fracassou a concepção de um partido monolítico, com dirigentes intocáveis, infalíveis, oniscientes e onipotentes; fracassou a visão de que o socialismo pode ser construído sem a participação da classe trabalhadora na gestão do Estado; fracassou a tentativa de construir sindicatos “fortes” sem a participação democrática dos trabalhadores em todas as decisões; fracassou a ideia – tão atraente e tão nefasta – de que as classes médias podem substituir o proletariado na construção de uma sociedade socialista. De todos esses fracassos, nenhum deles diz respeito ao socialismo ou ao marxismo. São fracassos do stalinismo, que não é uma corrente do marxismo, mas a sua antítese.

Para os trotskistas, portanto, trata-se de atualizar o programa, mas essa atualização manterá inevitavelmente a essência do velho programa, que deverá ser enriquecido pelos novos elementos da realidade. O novo programa socialista do século 21 é o programa da luta implacável contra o imperialismo e todas as suas táticas de opressão, exploração e engano; da revolução proletária; da democratização radical dos sindicatos e do extermínio do câncer burocrático em todas as organizações da classe trabalhadora; é o programa do retorno dos revolucionários à classe operária, de onde nunca deveriam ter saído; da luta contra todo tipo de opressão de gênero, raça, orientação sexual e nacionalidade, bandeiras que o stalinismo jamais levantou de verdade; é o programa da construção de partidos revolucionários profundamente democráticos e altamente disciplinados; da reconstrução de uma internacional marxista que una esses partidos em um estado-maior mundial; e de tantas outras questões que devem surgir e certamente surgirão.
 
Trotskismo: o marxismo do século 21 

Em sua autobiografia, Leopold Trepper, o famoso agente soviético que construiu uma rede de espionagem anti-hitlerista em plena Alemanha nazista, assim se referiu aos trotskistas:

A revolução havia degenerado num sistema de terror e de horror; os ideais do socialismo estavam ridicularizados por um dogma fossilizado que os verdugos tinham a desfaçatez de chamar de marxismo. Todos os que não se sublevaram contra a máquina stalinista são responsáveis por isso, coletivamente responsáveis. Não faço exceções, e não escapo deste veredicto.
Mas quem protestou? Quem elevou sua voz contra o ultraje? Os trotskistas podem reivindicar essa honra. Incitados por seu líder, que pagou a obstinação com a morte, eles combateram sem tréguas o stalinismo – e foram os únicos. Nos tempos dos grandes expurgos, só podiam gritar sua revolta nos vastos desertos gelados para onde haviam sido enviados com o objetivo de serem exterminados. Nos campos, sua conduta foi digna e mesmo admirável, mas suas vozes se perderam na tundra.
 
Hoje os trotskistas têm o direito de acusar os que então uivavam junto com os lobos. Que não esqueçam, porém, que possuíam sobre nós a imensa vantagem de dispor de um sistema político coerente, capaz de substituir o stalinismo, e ao qual podiam agarrar-se no meio da profunda miséria da revolução traída.

Estas linhas dão uma pequena ideia da força que possuem as ideias de Trotski e do papel que cumpriram no exato momento em que a contrarrevolução dirigida por Stalin avançava sobre as conquistas de Outubro. Ser anti-stalinista depois da queda do Muro de Berlim não é difícil. Ser anti-stalinista durante 60 anos – quando o stalinismo era a maior força política da classe trabalhadora mundial – é outra coisa. Disso, somente os trotskistas foram capazes. Nenhuma outra corrente o fez. Nenhuma.

O trotskismo é o marxismo do século 20 porque lutou contra a degeneração stalinista com toda a força de que dispunha. Mas é também o marxismo do século 21 porque a derrota dos regimes de partido único pelas massas soviéticas e do Leste Europeu – e que inaugurou o período histórico em que nos encontramos hoje – foi a confirmação de sua tese mais importante, ainda que tenha ocorrido em Estados que já não eram operários.

Lamentamos, como qualquer operário consciente, o fim da economia planificada naquela região do mundo. Mas não assumimos nenhuma responsabilidade pelo destino daqueles Estados enquanto estavam nas mãos do stalinismo. O nosso programa era o programa da revolução política. O muro de Berlim não desabou sobre nossas cabeças.

A luta contra o burocratismo e os privilégios, por uma vida melhor, por liberdade política e artística sempre foi parte inerente de nosso programa. Era também a nossa luta. Compartilhamos com as novas gerações o desejo de tomar em nossas próprias mãos o leme de nosso destino e não entregá-lo a nenhum herói, general ou novo czar.

Desconfiamos junto com eles de todo segredo, de toda articulação de bastidores, de toda tentativa de substituir a ação da classe trabalhadora pela sabedoria dos dirigentes iluminados. Ao ser e agir assim por quase 90 anos, o trotskismo conquistou o direito não somente à reabilitação histórica, não somente ao passado, mas também – e principalmente – o direito ao futuro.

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