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terça-feira, março 19, 2024

Afeganistão: a consumação da derrota do imperialismo

As forças da organização político-militar do Talibã entraram na capital Cabul e tomaram o poder. Antes disso, eles haviam tomado a maioria das cidades do interior em frente a um exército nacional em colapso. Simultaneamente, o último contingente de tropas americanas remanescentes no país começava sua retirada (por ordem do presidente Joe Biden) e tentava garantir a fuga de milhares de pessoas em voos aéreos, incluindo o ex-presidente afegão Ashraf Ghani e vários funcionários do regime derrubado. Qual é o significado desses fatos?

Por: Secretariado Internacional da LIT-QI

Alguns meios de comunicação de esquerda qualificaram esse fato como equivalente à derrota americana na Guerra do Vietnã na década de 1970. Outras publicações destacam e repudiam o caráter profundamente reacionário e opressor contra as mulheres e as minorias étnicas do regime anterior do Talibã (1996-2001). Ao mesmo tempo, a mídia reflete um debate muito intenso nos núcleos de inteligência e de formulação de políticas imperialistas sobre o balanço do que aconteceu e sobre o correto ou equivocado da decisão de Biden[1]. Diante desse panorama complexo: qual deve ser, então, a análise e a política dos socialistas revolucionários?

A “guerra ao terror” de Bush

Começaremos destacando que o que está acontecendo agora é o último episódio de uma longa história iniciada em 2001, quando o então presidente dos Estados Unidos, o republicano George Bush filho, para realizar o projeto internacional denominado Novo Século Americano, aproveitou o efeito político que produziram os atentados contra as Torres Gêmeas em Nova York, em 11 de setembro do mesmo ano. Bush lançou a “guerra ao terror” visando o que chamou de “o eixo do mal” (entre outros, os governos do Afeganistão, Iraque, Síria, Coréia do Norte e Irã).

O primeiro episódio dessa guerra foi a invasão do Afeganistão, para derrubar o governo do Talibã (acusado de ter ajudado os autores do 11 de setembro), em outubro de 2001, com participação minoritária de tropas da Grã-Bretanha e de outros países. Essa coalizão foi chamada de Força Internacional de Assistência para a Segurança (ISAF). O passo seguinte foi a invasão do Iraque, em março de 2003, para derrubar o governo de Saddam Hussein (acusado de possuir “armas de destruição em massa”).

Ambos os regimes foram derrubados, mas o imperialismo foi forçado a manter ocupações militares permanentes que tiveram que enfrentar guerras de libertação nacional que teve um curso cada vez mais desfavorável[2]. Para tentar reverter essa dinâmica, o imperialismo dobrou a aposta e chegou a ter 100.000 soldados no Afeganistão no início do governo Barack Obama. Mas essa aposta não deu resultado e o desenrolar da guerra no Afeganistão conduzia quase inevitavelmente a uma derrota do imperialismo (o mesmo acontecia no Iraque), algo que já era reconhecido pela própria burguesia imperialista, pela sua imprensa e pelos chefes militares. Nesses anos, foi criado o conceito de “síndrome do Iraque” (em analogia com o desfecho da Guerra do Vietnã) para caracterizar a situação decorrente de uma derrota e a necessidade de dirigir-se para outras alternativas[3].

Um giro de Obama

Foi nesses anos que se deu o essencial da derrota militar imperialista. Novamente, o imperialismo recebia a mesma lição do Vietnã. Quando se trata de uma ação militar rápida contra os países mais fracos, sua superioridade militar e tecnológica é eficaz, como na derrubada dos regimes do Talibã e de Saddam Hussein. Mas se essas ações se transformam em ocupações e guerras que se prolongam no tempo, contra uma resistência nacional, acabam sendo muito negativas para o imperialismo.

Como expressão dessa derrota, em 2014 a ISAF foi dissolvida, e começou a ser reduzido o número de soldados dos diferentes países. Isso demonstrou que a derrota não era só do imperialismo estadunidense, mas também dos países imperialistas europeus.

Obama já havia começado uma mudança de rota: a retirada gradual das tropas americanas até deixar cerca de 10.000 soldados na base de Bagram (entre eles 1.000 soldados italianos), basicamente, por um lado, para proteger Cabul, as instituições do regime fantoche e os bairros mais centrais. Por outro lado, para realizar operações de “assassinato seletivo” contra líderes talibãs. O objetivo estratégico era se retirar.

Nesse contexto, simultaneamente promoveu, forneceu armas, treinou e financiou com numerosos fundos a construção de um “exército nacional afegão” capaz de sustentar o regime de Cabul e conter o Talibã. Em teoria, tinha 300.000 soldados bem armados e treinados. Mas acabou se mostrando um “castelo de areia”, principalmente no interior, onde suas unidades eram comandadas por chefes tribais regionais (transformados em “senhores da guerra”) que muitas vezes mentiam sobre a quantidade de soldados que tinham para ficar com mais dinheiro.

Nos anos seguintes, ante qualquer ofensiva forte do Talibã, entregavam a cidade na fronteira da região e, muitas vezes, faziam um acordo com esta organização. Quando a decisão de Biden de retirar definitivamente os soldados americanos de Bagram se tornou conhecida, esse colapso se acelerou, facilitando o controle do território afegão pelas forças do Taleban e seu avanço em direção a Cabul.

“Vamos embora”

Nesse ponto, é preciso destacar que a política de retirada definitiva do Afeganistão já havia sido adotada por Donald Trump com o argumento de que não se devia gastar esforços em “guerras inúteis”, em regiões que ele não considerava estratégicas para o interesses dos EUA.

Depois de todos esses anos, é hora de trazer nosso povo de volta para casa”, disse o então presidente dos Estados Unidos. Mesmo “em fevereiro de 2020, os Estados Unidos e o Talibã assinaram um ‘acordo para trazer a pazao Afeganistão” (sem a participação do regime afegão). Quase 5.000 militantes do Talibã foram libertados nos meses após o acordo.

Em outras palavras, por mais que Trump grite agora que o resultado teria sido “mais bem-sucedido” com ele no poder, Biden nada mais fez do que continuar e executar uma decisão política que o imperialismo norte-americano havia tomado vários anos atrás. Nesse contexto, ele fez um acordo (de fato ou explícito) com o Talibã, pelo qual este atrasou sua entrada em Cabul para permitir a saída das tropas americanas e para que os oficiais do regime afegão derrubado pudessem fugir pelo aeroporto. Embora não seja o tema central deste artigo, digamos que esta política de Biden em relação ao Afeganistão se enquadra nos objetivos estratégicos que ele definiu para seu governo: tentar resolver os problemas econômico-sociais em nível nacional e se concentrar no confronto com a China em sua política internacional:

Uma primeira definição

Dissemos que algumas organizações de esquerda caracterizam a entrada do Talibã em Cabul como um “novo Vietnã” e até comparam duas fotos de um helicóptero militar dos EUA voando sobre as respectivas embaixadas. Mas se tomarmos apenas a mensagem que esta comparação de fotos transmite, teremos uma imagem distorcida da realidade.

Faremos uma primeira definição: há, sim, uma derrota para o imperialismo norte-americano em sua política de invasão de países e de imposição militar de sua vontade. Portanto, da mesma forma que apoiamos a resistência nacional do povo afegão contra o imperialismo, comemoramos essa derrota como um triunfo das lutas das massas. É uma demonstração de que o imperialismo pode ser derrotado e que não é uma força invencível, que possui profundas fraquezas. Essa definição é a central no balanço do que aconteceu nos últimos 20 anos. Nesse sentido, podemos traçar algum paralelo com a Guerra do Vietnã.

Porém, como já analisamos, o que está acontecendo agora é a consumação dessa derrota que, em essência, já havia ocorrido anos atrás (como no Iraque) e cujos efeitos mais importantes já ocorreram nesses anos. Por exemplo, a crise política do imperialismo norte-americano e a virada que Barack Obama deu na política de Bush, por um lado, e o grande ascenso revolucionário no mundo árabe e muçulmano, a partir de 2011. Foi nesses anos que aconteceu o “efeito Vietnã”.

O que vemos é como um final em “câmera lenta” e, desde então, “muita água correu por baixo da ponte”. Quem espera que o fato do triunfo do Talibã desencadeie automática e mecanicamente uma dinâmica global ou regional imediata semelhante à que abriu o Vietnã, ou a rápida expansão de um novo ascenso revolucionário no mundo árabe-muçulmano, possivelmente ficará desapontado . A dinâmica mundial e regional será muito mais complexa e contraditória.

Agora o problema é o Talibã

Finalmente, há outra diferença muito importante. A derrota do imperialismo no Vietnã deu origem a um novo estado operário no país unificado, embora burocratizado, liderado pelo Partido Comunista Vietnamita.

É impossível que isso aconteça no Afeganistão e a causa fundamental é o caráter do Talibã. Esta organização se transformou na direção político-militar da resistência nacional ao imperialismo e foi então a artífice da derrota imperialista. Foi uma luta muito progressista das massas afegãs e por isso a apoiamos.

No entanto, não podemos ignorar dois aspectos. Por um lado, que este caráter burguês do Talibã torna impossível para eles serem consistentes até o fim na luta contra o imperialismo. Por outro lado, que o Talibã já governou o país entre 1996 e 2001, e o fez sob um regime que caracterizamos como uma “ditadura teocrática”, com leis baseadas em uma interpretação extrema e intolerante da sharia islâmica.

Essas leis eram duramente opressivas-repressivas contra as mulheres: elas eram obrigadas a usar a burca como roupa obrigatória em público, não podiam dirigir carros, as escolas para meninas com mais de 8 anos foram eliminadas (antes dessa idade, elas só podiam aprender a ler e escrever estudando o Alcorão); não podiam ir às consultas com médicos do sexo masculino sem a presença de um homem que as acompanhasse (o que significava que muitas vezes não eram tratados de várias doenças, etc.

O regime do Talibã também cometeu vários massacres contra as minorias étnicas, religiosas e linguísticas do país “especialmente entre os xiitas e a população hazara, que consideravam ‘subumanos’ porque eram ‘não crentes e, segundo eles, não tinham nenhum direito”[4]. Foi precisamente esse caráter repressivo e reacionário do regime ditatorial do Talibã que fez com que alguns setores médios e até populares das cidades mais importantes, especialmente Cabul, preferissem até mesmo a ocupação dos EUA e o regime fantoche, dando-lhes algum apoio e colaboração. A imagem de muitas pessoas de Cabul querendo fugir da cidade é um reflexo disso.

Temos, então, essa combinação contraditória: um triunfo da resistência nacional afegã contra o imperialismo (embora, como dissemos, tenha ocorrido em câmera lenta), mas, como resultado, a instalação quase certa de uma nova ditadura teocrática. Celebramos o triunfo, mas, ao mesmo tempo, acreditamos que a tarefa que agora se apresenta para as massas afegãs (especialmente as mulheres e as minorias oprimidas) é a luta contra essa ditadura.

Em síntese, a consumação de uma derrota imperialista acaba de acontecer. Isso fortalece as lutas contra o imperialismo dos trabalhadores e das massas no mundo e chamamos a redobrá-las. Ao mesmo tempo, assume o poder uma organização cujo projeto é instalar uma ditadura teocrática. A tarefa que começa no Afeganistão é a luta contra o novo governo.

[1] Sobre este último punto, ver el dossier publicado por la página https://www.atlanticcouncil.org/blogs/new-atlanticist/experts-react-the-taliban-has-taken-kabul-now-what/ o el reportaje  de la BBC News británica en https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-57762858

[2] Ver el artículo de Martín Hernández “¿Qué guerra es esta?” en la revista Marxismo Vivo No 4 (diciembre 2001) y el de Alejandro Iturbe publicado en este sitio en: https://litci.org/es/la-reaccion-democratica-del-sindrome-de-vietnam-al-sindrome-de-irak/.

[3]Sobre la situación existente ya en 2009, recomendamos leer los artículos de Bernardo Cerdeira en el dossier “Medio Oriente. Un nuevo e inmenso Vietnam para el imperialismo”. Publicados en la revista Marxismo Vivo No 22 (diciembre de 2009).

[4] Yousufzai, Rahimyllah, “Pakistani Taliban at work”, The News (18/12/1998)

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