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segunda-feira, março 18, 2024

Coreia do Sul: a grande vitória da juventude trabalhadora

O governo sul-coreano, frente a uma forte onda de mobilizações, acaba de recuar no seu projeto de aumentar a jornada semanal de trabalho de 52 para 69 horas. Embora participassem pessoas de todas as idades, os protestos foram liderados por jovens trabalhadores integrantes das chamadas gerações Y e Z[1]. Sem dúvida, trata-se de um triunfo em um país muito importante do Sudeste asiático.

Por: Alejandro Iturbe

A Coreia do Sul é um dos países em que a península coreana está dividida e que tem uma superfície de cerca de 200.000 km2. Atualmente, na península há cerca de 75.000.000 de habitantes (23 milhões na Coreia do Norte e 52 milhões na Coreia do Sul).

A nação coreana possui uma cultura e um idioma próprios de longa data. Em 1905, depois do triunfo do Japão na guerra russo-japonesa, a península passou a ser um protetorado japonês e, desde 1910, foi diretamente anexada como possessão colonial. Pouco depois, começou uma resistência coreana antijaponesa que foi duramente reprimida.

Nesse contexto, o imperialismo japonês foi derrotado na Segunda Guerra Mundial (1945) e teve que abandonar a Coreia (junto com vários outros territórios asiáticos que havia anexado). O Norte do país foi dominado pelas forças militares da União Soviética junto com forças da resistência coreana e um governo foi instalado liderado por Kim Il-sung. Entretanto, no Sul, outro governo era estabelecido, respaldado por numerosas tropas estadunidenses. Ambos países se declararam independentes e reivindicavam o direito de governar toda a península.

Nesse contexto, ocorreu a Guerra da Coreia (1950-1953) entre ambos países. No curso da guerra, a Coreia do Norte recebeu o apoio da China (governada por Mao, depois da revolução de 1949). Pelo lado da Coreia do Sul, o “exército próprio” mostrava-se incapaz de sustentar a guerra e, de fato, quem a protagonizou foi o exército estadunidense. Depois de três períodos variáveis e diferenciados, a guerra terminou em “empate” e se manteve a fronteira entre ambos países no paralelo 38, altamente militarizada de ambos os lados[2].

Há algum tempo, em um artigo sobre a guerra da Coreia, analisamos alguns elementos sobre a atualidade da Coreia do Norte[3]. Sobre a Coreia do Sul, nos interessa destacar que sua “marca de nascimento” é ter surgido como uma ferramenta (quase uma “invenção”) do imperialismo estadunidense em sua política de tratar de conter a onda de expansão da revolução chinesa na região (como o seria também o Vietnã do Sul). Sem considerar esta marca de nascimento é impossível entender o desenvolvimento econômico, político e militar que ocorreu posteriormente na Coreia do Sul nem a atual situação do país.

Um grande desenvolvimento econômico

Desde a década de 1960, através de diferentes ondas, a Coreia do Sul viveu um grande desenvolvimento econômico capitalista. Atualmente é uma “potência econômica” que ocupa o 10o ou 11o lugar na lista dos maiores PIBs nominais do mundo. Na década de 1980, era classificada como um dos “Tigres de Ásia” (junto com Singapura, Hong Kong e Taiwan).

Depois, sua produção industrial foi incorporando cada vez mais tecnologia e valor agregado. Ao mesmo tempo, a burguesia da Coreia do Sul tem a capacidade de exportar capitais e realizar investimentos em outros países. Depois da restauração capitalista na China, começou a ser um importante investidor estrangeiro nesse país: “O investimento direto sul-coreano na China – o maior sócio comercial da Coreia do Sul- aumentou em 20,7 % ano a ano até 5.8 bilhões de dólares em 2019, devido ao aumento dos investimentos em instalações dos fabricantes de veículos elétricos e chips”[4]. 

Este desenvolvimento gerou uma grande mudança na estrutura econômico-social da Coreia do Sul, que passou de um país majoritariamente agrário para ser um país altamente industrializado e urbanizado, com uma numerosa classe operária concentrada em grandes empresas e plantas industriais, e de nível educativo superior.

O “segredo” desse grande desenvolvimento capitalista são os altíssimos níveis de exploração a que essa classe operária é submetida, com longuíssimas jornadas de trabalho: é um dos países do mundo onde se trabalha mais horas por ano[5]. A isto se somam as duríssimas condições de trabalho determinadas por “ditaduras” empresariais arbitrárias que, entre outras coisas, promovem uma brutal competição entre os próprios trabalhadores. A organização sindical foi por muito tempo impedida e depois tolerada, mas seus agentes são permanentemente submetidos a perseguições nas empresas.

Por tudo isso, a população apresenta elevados índices de estresse e depressão laboral e o índice de suicídios mais elevado entre os países “desenvolvidos” [6]. É necessário considerar este contexto como um dos fatores centrais que gerou esta rebelião da juventude trabalhadora.

Os impulsionadores e beneficiários desses níveis de exploração e do grande desenvolvimento econômico têm sido os chaebols, como são chamados no país os gigantescos conglomerados empresariais (industriais, bancários e comerciais) que controlam a maior parte da economia da Coreia do Sul. Os chaebols mais importantes (Samsung, Hyundai, LG e Kia) são empresas de nível internacional que competem nos mercados de ramos de alto valor agregado (automóveis, construção naval, semicondutores, celulares e eletrônica em geral).

Uma semicolônia “privilegiada” dos EUA

Apesar de ser uma “potência econômica”, base territorial de empresas internacionais e de exportar capitais, sempre caracterizamos a Coreia do Sul como uma semicolônia do imperialismo estadunidense pelos pactos econômicos, políticos e militares que a subordinam aos EUA (lembremos sua “marca de nascimento”).

Este caráter de semicolônia é plenamente evidente no campo militar: a Coreia do Sul sempre foi uma “peça” dos dispositivos militares do imperialismo estadunidense na região. Primeiro, contra a influência e a “expansão” da revolução chinesa de 1949. Depois, desde a restauração do capitalismo na China, como parte do cerco militar que o imperialismo estadunidense monta contra este país, através da aliança AUKUS (siglas em inglês de Australia-Reino Unido-EUA) cujo objetivo é “‘defender os interesses compartilhados no Indo-Pacífico’ destas potências para ‘contrabalançar os avanços da China’”[7]. É muito possível que o Japão entre nesta aliança[8].

A 70 quilômetros de Seul está Camp Humphreys, a “maior base ultramarina” dos EUA, uma fortaleza de 1.450 hectares com mais de 25.000 soldados estadunidenses e moderníssimo armamento[9]. O exército sul-coreano foi formado e moldado pelos EUA e permanentemente são realizados exercícios militares conjuntos (e já sabemos o que isto significa)[10]. Embora o “inimigo estratégico” seja a China, a “hipótese de conflito” para estes exercícios (e toda a estrutura do exército coreano) é uma hipotética agressão da Coreia do Norte.

A maioria dos 600.000 soldados deste exército são recrutados: todos os homens jovens da Coreia do Sul devem fazer o serviço militar obrigatório de no mínimo 18 meses, e aqueles que tentam se safar são duramente castigados, inclusive com a prisão. Em teoria, haviam sido abertas conversações para acabar com o “estado de guerra” entre ambos países e, há alguns anos, o regime prometeu acabar com o serviço militar obrigatório. Mas isso não ocorreu e o recrutamento continua. É outra razão que alimenta a rebeldia dos jovens sul-coreanos.

A revolução de 1987

Dissemos que a economia sul-coreana está dominada pelos chaebols. Durante várias décadas isso se expressou de forma muito evidente na existência de um regime político ditatorial com presidentes de origem militar e uma dura repressão interna. Foi o caso de Chun Doo-hwan, que governou desde 1980. Em 1987, anunciou que designava como seu sucessor, a partir de 1988, Roh Tae-woo (outra figura de origem militar). Ficava evidente que de nada valeram as promessas feitas em anos anteriores, de modificar a despótica constituição, vigente desde 1948, entre outras questões para instituir a eleição do presidente pelo voto popular.

Este anúncio foi recebido com grande descontentamento pelo povo sul-coreano. Como resultado, explodiu o Movimento ou Levante Democrático de Junho, com gigantescas mobilizações populares que deram um salto depois do assassinato do ativista estudantil Park Jong-chol. A repressão se mostrou impotente para frear o processo e o regime sul-coreano foi colocado na parede.[11].

Finalmente, o regime foi obrigado a emitir a Declaração de 29 de Junho de 1987 na qual convocava eleições presidenciais diretas para 1988 e aceitava a necessidade de reformar a Constituição de 1948, ampliando as garantias democráticas.

A Constituição foi reformada e se constituiu uma nova em outubro de 1987, o que estabeleceu o regime chamado Sexta República, que permanece até hoje. Entre as modificações está a eleição do presidente a cada cinco anos, pelo voto popular, e, como vimos, maiores garantias das liberdades democráticas.

Nas eleições diretas de 1988, venceram o próprio Roh Tae-woo e seu Partido pela Justiça Democrática (favorecidos pela divisão das forças de oposição). Apesar desta aparente continuidade com o regime anterior, consideramos que o Movimento de Junho de 1987 foi uma verdadeira revolução democrática que, com a luta popular, derrubou um regime ditatorial e instalou um novo (também burguês, mas muito mais democrático) expresso na nova Constituição. Por isso, na situação política da Coreia do Sul, temos que falar de “um antes e um depois de 1987”.

A rejeição à subordinação militar aos EUA

O processo de luta de massas de 1987 obteve uma grande vitória porque derrubou uma ditadura e instalou um regime democrático burguês. Entretanto, não mudou o caráter capitalista semicolonial do Estado sul-coreano. O novo regime político surgido em 1987 continuou a serviço de manter esse caráter.

Em primeiro lugar, a subordinação militar ao imperialismo estadunidense devido a que a Coreia do Sul é uma peça em sua estrutura no Pacífico asiático. Já nos referimos à base militar de Camp Humphreys e aos exercícios conjuntos de ambos os exércitos e o serviço militar obrigatório.

Os jovens sul-coreanos já estão cansados deste serviço militar obrigatório: “Definitivamente preferiria não servir se me dessem a opção», porque esse “serviço militar é um desperdício da minha juventude», já que demorará em conseguir um trabalho na hipercompetitiva sociedade da Coreia do Sul, como declarou em 2019 Namnung Jing, um jovem estudante de informática[12].  

Ao mesmo tempo, reprovam a causa com qual a burguesia sul-coreana tenta justificá-lo: o estado de “ameaça bélica permanente” que a Coreia do Norte representaria: « Não tenho sentimentos duros contra o Norte…Nunca considerei a Coreia do Norte como um inimigo”, acrescentou NamnungA aspiração de grande parte dessa juventude é a reunificação pacífica de ambos países: «Sempre considerei os norte-coreanos e sul-coreanos um só povo, espero que os dois países possam unir-se um dia», declarou outro jovem, Hang Sang-kyu, na mesma entrevista.

E manifestam permanentemente essa aspiração e sua reprovação à subordinação militar aos EUA. Por exemplo, a base militar de Camp Humphreys estava planejada desde a década de 1990, em substituição a uma base anterior, porém só foi inaugurada em 2018 pelo forte rechaço e pelas importantes mobilizações contra. “Milhares de pessoas estiveram envolvidas nos incidentes desencadeados durante o protesto contra a criação de uma nova e maior base militar estadunidense”[13]. Também houve mobilizações na ilha de Jeju (província ao sul do país) contra a construção de um segundo aeroporto com fins militares [14].

O ódio devido à corrupção

Em segundo lugar, continua sendo um regime cujas instituições (Poder Executivo, Parlamento e Justiça) estão a serviço e são controladas pelos chaebols. Só que agora devem fazê-lo de forma mais “dissimulada” que antes de 1987. Uma situação que dá lugar ao permanente aparecimento de escândalos por corrupção que desagradam a juventude e também geram fortes mobilizações.

Por exemplo, em 2016, “Centenas de milhares de manifestantes saíram às ruas em Seul para pedir a renúncia da presidente Park Geun-hye… acusada de permitir que uma amiga muito próxima, Choi Soon-sil, tivesse acesso a documentos privados do governo sem a devida autorização[15].

Choi foi detida e investigada por “estar usando sua amizade com a presidente para solicitar doações a companhias como Samsung para fundações de fachada que ela gerenciava”. Os escritórios centrais da Samsung foram invadidos no processo, em busca de documentação relacionada ao caso[16].

A presidente Park não renunciou e nem sequer foi incluída nas investigações, embora dois de seus “colaboradores mais próximos” foram. A conclusão do artigo é que “a investigação começou a cercá-la. Do mesmo modo que os manifestantes». Em outras palavras, para o povo coreano, em especial para sua juventude, fica cada vez mais evidente que a corrupção envolve o conjunto do governo e é resultado de sua relação com os chaebols.

Algumas conclusões

A atual juventude trabalhadora e estudantil da Coreia do Sul é “filha de 1987”. Esses jovens nasceram e se criaram no “depois” da mudança de regime, no marco de um país “mais rico” que vivia um grande desenvolvimento econômico, e com um regime democrático burguês no qual supostamente “todos são iguais perante a lei”, embora esteja realmente dominado pelos chaebols.

Analisamos três fatores que alimentam seu descontentamento e sua rebeldia. O primeiro é o rechaço ao caráter de semicolônia militar do imperialismo ianque e o caráter da Coreia do Sul como “peça” de sua política militar no Pacífico asiático. O segundo é o repúdio à corrupção do regime, através da qual se manifesta o domínio dos chaebols. O terceiro é a reprovação às duríssimas condições de exploração a que é submetida e que o atual regime não só mantém como quer aumentar, o que se manifestou com nitidez nesta última onda de mobilizações que obrigou o governo a recuar em seu projeto de aumentar a jornada semanal de trabalho.

Nos dá a impressão de que esta recente vitória fortalecerá o ânimo de luta desta juventude e abre a hipótese de novas lutas ainda mais fortes. Uma continuidade e um fortalecimento das lutas podem ser a base objetiva sobre a qual a juventude avance em seus objetivos para a reivindicação de acabar com o domínio semicolonial estadunidense e, a partir daí, a proposta de uma reunificação pacífica da Coreia. Uma aspiração que está muito ligada com a necessidade de acabar com a atual realidade dos chaebols como donos do país. Em outras palavras, que essa juventude avance em suas lutas e organização, para um programa de revolução socialista. No marco desse processo, a LIT-QI propõe a necessidade da construção de uma organização socialista revolucionária no país que intervenha e impulsione essas lutas e organização e defenda esse programa socialista.


[1] En Corea jóvenes echan jornada laboral atrás (diariopresente.mx)

[2] Sobre esta questão, ver https://litci.org/es/a-los-66-anos-del-inicio-de-la-guerra-de-corea/

[3] Sobre esta questão, ver o artigo da referência anterior.

[4] https://sp.yna.co.kr/view/ASP20200320001600883

[5] Los países del mundo en los que se trabaja más horas (y los dos primeros son de América Latina) – BBC News Mundo

[6] Korea’s hidden problem: Suicidal defectors – BBC News

[7] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-58579238

[8] https://meta-defense.fr/pt/2022/11/15/o-jap%C3%A3o-est%C3%A1-cada-vez-mais-perto-da-alian%C3%A7a-aukus/

[9] EEUU abre en Corea del Sur su mayor base militar en el extranjero | HISPANTV

[10] EEUU y Corea del Sur anunciaron nuevos ejercicios militares para contrarrestar las agresiones de Kim Jong-un – Infobae

[11] Para quem tiver interesse em conhecer mais este movimento, recomendamos Ver o filme de 1987: When the Day Comes, dirigida por Jang Joon-hwan (2017).

[12] Los jóvenes surcoreanos están hartos del servicio militar – SWI swissinfo.ch

[13] Policías y manifestantes se enfrentaron por nueva base de EE.UU. en Corea del Sur – Cooperativa.cl

[14] https://ejatlas.org/conflict/second-airport-in-jeju-south-coast-of-south-korea/?translate=es

[15] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-37962254

[16] Corea del Sur: allanan las oficinas de Samsung en relación con escándalo político que rodea a la presidenta – BBC News Mundo

Tradução: Lílian Enck

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