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terça-feira, março 19, 2024

Quênia: As massas superam o medo do regime bonapartista e se levantam

O Quênia é difundido no mundo como o país dos maratonistas. Essa ideologia burguesa é para esconder o massacre que seus camponeses sofreram do exército inglês quando se levantaram em defesa de suas terras em 1952 e a continuidade dessa política, por outras formas, desde a independência nos anos 60 do século passado. O massacre de 1952 foi perpetrado pelas mesmas Forças Armadas que acabavam de participar da derrota do nazi-fascismo na II Guerra Mundial. A Força Aérea, por exemplo, usou os mesmos aviões contra as tropas nazistas e contra os Kikuyos que lutavam por suas terras.

Por: Cesar Neto

Um dos líderes da luta dos Kikuyos, Jomo Kennyata, foi preso e mais tarde solto, e levado a condição de primeiro-ministro (1963-1964) e, finalmente, presidente (1964-1978). Após sua morte natural, quem assumiu foi Daniel Arap Moi (1978-2002). Ou seja, durante 40 anos exerceram o poder e construíram uma ditadura baseada no partido único e na repressão às massas. Kennyata, na juventude tinha estudado na Universidade Comunista dos Trabalhadores do Leste de Moscou; em 1945, junto com Padmore, organizou o Congresso Pan Africanista em Manchester. Estando no poder aplicou a política de partido único aprendido com os estalinistas e impôs às massas, a colaboração de classes.

A luta do povo Kikuyo

As melhores terras do Quênia eram muito cobiçadas para a plantação do chá. Em 1934, no Vale do Rift, os ingleses expulsaram os nativos e destinaram a eles as piores terras. Para 1.029.442 nativos foram destinadas 18.340 km2. E para 17.000 europeus foram destinadas 17.700 km2. Em outro censo, em 1948, 1.250.000 Kikuyos foram autorizados a utilizar 5.200 milhas quadradas de terras enquanto 30.000 colonos britânicos receberam 12.000 milhas quadradas.

Os kikuyos só podiam sair de suas terras apresentando o Kipande, um tipo de passaporte interno, com o qual os  kikuyos eram estrangeiros dentro de sua própria terra.

Os ingleses consideravam os Kikuyos como crianças e assim deveriam ser tratados. E os que se rebelavam sofriam agressões, tortura e assassinato. Essas formas de violência eram vistas como procedimento natural. A Legislação Trabalhista Queniana, até 1950, reconhecia a violência como legal e até descrevia os tipos de ações punitivas possíveis.

A violência praticada pelos ingleses era tamanha que em 1908, Winston Churchill afirmou que não se tratava de repressão, mas diretamente de massacre. E preocupado disse que se a Câmara dos Comuns ficasse sabendo desses massacres, os Planos para o Protetorado da África Oriental estariam em risco. Churchill aconselhava que se evitasse os massacres em tamanha escala. Traduzindo Churchill disse: matem, mas não matem tanta gente.

O grupo Lever se apropriou da renda da terra dos Kikuyo

Os ingleses cultuam o ritual de tomar chá todas as tardes. O famoso chá das cinco. Fala-se da tradição, mas não se fala de como foi produzido esse chá. Pois, esse chá foi produzido em terras dos kikuyos, com base na violência acima descrita e distribuído no mundo pela mesmíssima Lever. Hoje se chama Chá Lippton e é distribuído pela Unilever, por isso se diz que: “tem sangue no chá”[1]

A independência pela metade. A traição de Jomo Kennyata

A onda independentista que varreu a África no início dos anos de 1960 também chegou ao Quênia. O imperialismo inglês agiu rápido e frente a possibilidade de perder a mão, tentou salvar os dedos ainda que perdesse os anéis. Assim, aceitou anistiar Jomo Kennyata, negociou com ele, permitiu que chegasse a ser primeiro Ministro e convocasse eleições que obviamente foram vencidas por ele.

Dessa maneira podemos entender o atual Quênia, e a continuação e atualidade da dependência econômica e política.

O Quênia hoje

Como parte da crise capitalista, o xelim, a moeda do país vêm se desvalorizando e a dívida externa vem crescendo. Em 2013 o país devia US$ 16 bilhões. Oito anos depois estava quase cinco vezes maior. Em 2021, durante a pandemia estava em US$ 71 bilhões.

30% da receita é destinada ao pagamento do serviço da dívida, isto é, somente aos juros. 69,1% do PIB corresponde à dívida. Entre as 50 economias com maior risco de incapacidade de pagar as dívidas o Quênia está em sexto lugar, segundo a agência de investimento Bloomberg

Metade da dívida foi contraída junto ao Banco Mundial e ao Eurobank. A China vem investindo em infraestrutura no país e hoje 19% da dívida é com os chineses que entre outras obras financiaram a construção da estrada de ferro que liga o porto de Mombaça à capital Nairobi. Essa estrada de ferro, Standard Gauge Railway, com quase 700 quilômetros é um investimento de luxo voltado ao turismo para estrangeiros. Os nacionais olham e sonham que um dia, talvez, possa desfrutar dessa viagem.

O financiamento da Standard Gauge Railway, como todo investimento chinês é mantido em sigilo. Mas se for nos mesmos termos do porto construído na vizinha Tanzânia, caso o Quênia não consiga pagar a dívida, perderá a propriedade da empresa e…. seguirá devendo.

O turismo tem uma importante participação na fonte de divisas. Com a pandemia esse setor veio abaixo e com ele a escassez de dólares.  O governo foi obrigado a contrair mais empréstimos em tempos de juros altos para poder saldar os compromissos imediatos. Os preços altos da energia e dos alimentos, entre outros fatores, jogaram a inflação para a casa dos dois dígitos e o desemprego está na casa de 14%. 

A massa atendeu a convocação e saiu as ruas

Nesta segunda feira uma imensidão de pessoas saiu as ruas protestando contra o governo atual. As manifestações foram gigantescas para o que é a tradição de um país mergulhado em um regime bonapartista a quase 50 anos.

Milhares de pessoas marcharam na mobilização nacional contra os preços dos alimentos e custo de vida. A marcha foi violentamente reprimida pela polícia que usou bombas de gás, balas de borracha e armas letais.  Atingido por uma bala, o jovem Wiliam Mayange, faleceu na segunda feira quando protestava na Maseno University, localizada em Kisumu. Para o governo “as manifestações são inconstitucionais e atrapalham a paz e os negócios no país”. Mais de 500 pessoas foram presas e há pelo menos um estudante morto.

A massa luta, mas a direção é traidora

No ano passado houve eleições. Dois candidatos burgueses, ambos foram parte do governo que saia, disputaram as eleições e o resultado foi bastante apertado.  O vencedor Wilian Ruto fez 50,5% dos votos e Raila Odinga 48,8%. Odinga nuca aceitou o resultado e diz que houve mais uma vez fraude contra ele. É a sua quinta derrota.

Raila Odinga pressentiu a bronca da população e chamou a mobilização. Ele só não contava que seria tão massiva.

Nem Raila Odinga e nem o eleito Wiliam Ruto são alternativa para os trabalhadores. Ambos participaram de vários dos últimos governos, jamais questionaram o roubo das terras dos Kikuyos, não questionaram o acordo com os chineses para a construção da Standard Gauge Railway, e mais, estiveram de acordo com os acordos militares contra a insurgência assinado entre os EEUU e Israel e a polícia e as Forças Armadas quenianas. 

* todo apoio a luta do povo queniano

* pelo fim do regime bonapartista que existe desde a independência

* por uma constituinte que garanta a nacionalização das terras e liberdades democráticas

* por um governo dos trabalhadores


[1] There is blood in the tea – http: mg.co.za/article/2019-11-01-00-there-is-blood-in-the-tea

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